«(…) Na Peter Minuit Plaza, que recebeu esse nome, aliás, em homenagem a um dos directores da comunidade holandesa em Manhattan, encontra-se outro portal do tempo para a história de que trata este livro. Logo à entrada da praça, na base do mastro onde luzem as estrelas e listas da bandeira dos Estados Unidos, uma placa inaugurada em 1954, no tricentenário de um episódio quase mítico ocorrido em Nova Amesterdão, apresenta a imagem de dois leões ladeando a estrela de David, símbolos do judaísmo. Logo abaixo deles, lê-se a inscrição:
EDIFICADO PELO
ESTADO DE NOVA IORQUE
PARA HONRAR A MEMORIA
DOS VINTE E TRÊS HOMENS, MULHERES
E CRIANÇAS
QUE DESEMBARCARAM EM SETEMBRO DE
1654
E FUNDARAM A PRIMEIRA COMUNIDADE
JUDAICA
NA AMÉRICA DO NORTE
Quem eram, afinal de contas, as tais
23 pessoas que aportaram em Manhattan no longínquo ano de 1654? Em que navio chegaram?
De onde vinham? Seriam procedentes do Brasil, como muitos querem crer? Deixaram
esses homens, mulheres e crianças evidências concretas, marcas incontestáveis
da sua existência? É possível estabelecer, com solidez de fontes, as suas identidades
e reconstituir as suas respectivas trajectórias? Ou não passará tudo de uma
epopeia tão heróica quanto falsa, contrafacção histórica, mito de origem, como afirmam
os investigadores mais cépticos?
É preciso procurar
meticulosamente os fragmentos de um intrincado quebra-cabeça, para recompor as possíveis
circunstâncias do episódio celebrado em bronze. Há peças desse enigma que não parecem
encaixar, outras talvez permaneçam perdidas para sempre. Os documentos são esparsos,
fugidios, exigindo múltiplos esforços de interpretação para produzir uma narrativa
consistente, um relato que faça o mínimo sentido.
O cemitério judaico de St. James Place
é um dos poucos vestígios dessa aventura ainda envolta em brumas. Uma saga que,
caso seja considerada, permite estabelecer uma ligação directa entre as fogueiras
da Inquisição (maldita) na Península Ibérica,
a opulência da época de ouro dos Países Baixos, as guerras sangrentas do
chamado Brasil holandês, e os primórdios da cosmopolita Nova Iorque. Como
pano de fundo de toda essa trama, sobressai a vida eternamente à deriva dos
que, para fugir à morte, se lançavam para os confins de outras terras e o desconhecido
de novos mundos». In lira Neto, Arrancados da Terra, 2021, Penguin Random-House Grupo
Editorial, 2021, chancela Objectiva, ISBN 978-989-784-257-3.
Cortesia de PRHGEditorial/JDACT
JDACT, Lira Neto, Literatura, Judeus, Narrativa,