De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado
O
Semão aos Peixes
«(…) Em Sendim, são horas de almoço.
Que será, onde será. Alguém diz ao viajante: Siga por essa rua fora. Aí adiante
há um largo, e no largo é o Restaurante Gabriela. Pergunte pela senhora Alice.
O viajante gosta desta familiaridade. A mocinha das mesas diz que a senhora
Alice está na cozinha. O viajante espreita à porta, há grandes odores de comida
no ar que se respira, um caldeirão de verduras ferve a um lado, e, da outra
banda da grande mesa do meio, a senhora Alice pergunta ao viajante que quer ele
comer. O viajante está habituado a que lhe levem a ementa, habituado a escolher
com desconfiança, e agora tem de perguntar, e então a senhora Alice propõe a
Posta de Vitela à Mirandesa. Diz o viajante que sim, vai sentar-se à sua mesa,
e para fazer boca trazem-lhe uma suculenta sopa de legumes, o vinho e o pão,
que será a posta de vitela? Porquê posta? Então, posta não foi sempre de peixe?
Em que país estou, pergunta o viajante ao copo do vinho, que não responde e,
benévolo, se deixa beber. Não há muito tempo para perguntas. A posta de vitela,
gigantesca, vem numa travessa, nadando em molho de vinagre, e para caber no
prato tem de ser cortada, ou ficaria a pingar para a toalha. O viajante julga
estar sonhando. Carne branda, que a faca corta sem esforço, tratada no exacto
ponto, e este molho de vinagre que faz transpirar as maçãs do rosto e é cabal
demonstração de que há uma felicidade do corpo. O viajante está comendo em
Portugal, tem os olhos cheios de paisagens passadas e futuras, enquanto ouve a
senhora Alice a chamar da cozinha e a mocinha das mesas ri e sacode as tranças.
Dossel,
e Maus Caminhos
O
viajante é natural de terras baixas, muito lá para o sul, e, sabendo pouco
destes montes, esperava-os maiores. Já o disse, e torna a dizer. Não faltam os
acidentes, mas são tudo colinas de boa vizinhança, altas em relação ao nível do
mar, mas cada qual ombro com ombro da que está próxima e todas perfiladas. Em
todo o caso, se alguma se atreve um pouco mais ou espigou de repente, então
sim, tem o viajante uma diferente noção destas grandezas, não tanto pelo que
está perto, mais por aquela vultosa serra ao longe. Chegando-se-lhe, percebe-se
que a diferença não era assim tão grande, mas bastou para promessa de um
momento. Esta linha férrea que vai ao lado da estrada parece de brincadeira, ou
restos de solene antiguidade. O viajante, cujo sonho de infância foi ser maquinista
de caminhos-de-ferro, desconfia que a locomotiva e as carruagens são desse
tempo, objectos de museu a que o vento que vem dos montes não consegue sacudir
as teias de aranha. Esta linha é a do Sabor, do nome do rio que se torce e
retorce para alcançar o Douro, mas onde esteja o gosto da traquitana, isso não
descobre o viajante. Sem dar por que passou a serra, o viajante chega a
Mogadouro. A tarde vai descaindo, ainda luminosa, e do alto do castelo se podem
deitar contas ao trabalho dos homens e das mulheres deste lugar. Todas as encostas
em redor estão cultivadas, é um jogo de canteiros e talhões, uns enormes,
outros mais pequenos, como se servissem apenas para preencher as sobras dos
grandes. Os olhos repousam, o viajante estaria totalmente regalado se não fosse
o remorso de ter feito fugir do recato das muralhas um casal de namorados que
estava tratando dos seus amores. Aqui em Mogadouro ficou ilustrado, uma vez
mais, o antigo conflito entre acção e intenção». In José Saramago, Viagem a
Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN
978-972-003-473-1.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,