«(…) Porém, a obra-prima do mundo satírico do rei Afonso X nasceu quando este andava pelos 60 anos de idade: uma poesia fresca e ágil, embalada pelo sonho duma vida livre das obrigações do governo. Com tintas que parecem dum poeta moderno, diz Rodrigues Lapa, Afonso X põe-se no estado psicológico de quem despiu o manto real e quer ser outro, um negociante, por exemplo, a navegar livremente no mar livre, longe da terra, da política e da guerra: Estou farto do canto das aves, do amor e das armas. Antes um bom galeão que me afaste depressa deste diabo de terra cheia de lacraus, cujo aguilhão senti na alma! Juro por Deus que não andarei de capa, nem com barbas, armas ou razões de amor! Tudo isso me cansa e, volta e meia, me faz chorar. Antes um pequeno barco e ir ao longo da costa, a vender azeite e farinha, para evitar o veneno dos lacraus! Não me alegro de atirar lanças ao tabulado nem de bafordar! De noite andar armado e fazer rondas, vontade não tenho. Gosto mais do mar, pois já fui marinheiro. E por causa dos lacraus, prefiro tornar ao que fui antigamente! Não me falem de guerras! Antes andar sozinho e ir, como um mercador, em busca dalguma terra onde não haja lacraus negros nem pintalgados!
Há outras cantigas de
troça, contra vassalos sovinas, poetas plagiários ou de expressão menos
ortodoxa, pedinchas, maus cantores, fidalgos ridículos no trajar, manhosos,
etc. Algumas dessas cantigas de escárnio têm graça. Contudo, afastam-se do
núcleo central da guerra andaluza. Neste ciclo da guerra andaluza, entram ainda
outros poetas, por exemplo Gil Pérez Conde: Aos cavaleiros e à tropa dos
concelhos, ordenou o rei que não comessem galinha, durante a campanha, mas,
sim, vacas e carneiros, porcos frescos, cabritos e gansos. Com efeito diziam os
adivinhos que, se comessem galinha, seria perdimento da terra.
Lembra-nos isto a frase dum poltrão, em Tirso de Molina, na sua comédia
Dona
Beatriz da Silva: soy una galina, isto é, sou um cobarde. E
por cada um ser aquilo que come, proibira el-rei que os soldados comessem
galinha! Gil Pérez ajunta, ironicamente, que muitos a comeram. Por seu lado,
Pero Gómez Barroso volta-se também contra um rico-homem que faltou na guerra e
só veio na paz. E questiona com o rei, por não lhe ter dado ocasião de o
servir! Fica-nos a impressão de que poetas e fidalgos pouco temiam Afonso X, o
Sábio. Este e Garcia Pérez disputam, entre si, acerca duma peliça de cor, já um
pouco velha. Que a atirasse à estrumeira, aconselha Garcia Pérez. E o rei não
se zanga. Responde até com mesura» In Mário Martins, A Sátira na Literatura
medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura,
volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões,
1986.
JDACT, Mário Martins, Literatura, Cultura e Conhecimento, Instituto Camões,