quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV). Mário Martins. «O favor real fazia perder a cabeça a muita gente e o monarca tinha de os pôr no seu lugar: Pois Fulano mais vale sendo pobre e sem poder…»

jdact

 Sátiras contra os Favoritas e Magnates

«(…) Favoritos do rei, ricos-homens e outros magnates levavam também a sua conta por tabela. Martin Moxa, numa tenção, pergunta a um cortesão-poeta se os privados duram muito na privança. É que só tomam para si. Quem não lhes dá, escusa de esperar favor do rei. O outro observa que não sabe novelar e só diz: estão cada vez mais poderosos, as suas rendas aumentam e o povo empobrece. Empobrece e emigra: e, con proveza, da terra sair. Parecem os tempos de hoje. Martin Moxa zanga-se ironicamente. Morais na corte e nada sabeis! Quem lá vai, algo deve levar. Caso contrário, passa por tolo. Que ele dê, porque os privados, sem isso, nada fazem.

O conde Pedro de Portugal insistia no mesmo ponto: seu saber é juntar aver. Servir o rei nada vale. Peitas, isso sim! E se el-rei, por boa inclinação, procura fazer bem, levam-no a mal. Um dos grandes privados, na corte del-rei Afonso III, era o chanceler Estêvão Anes. Que miopia a dele! Mas caiu bem no goto do rei, nota Joan Soárez Coelho, jogando com o duplo significado de cair. Bendita miopia que o fazia cair! Míope?, pergunta Roí Queimado. Talvez. Mas ouve bem. Cuidado! E erguem-se agora, contra o favorito, três cantigas violentas de Airas Pérez Vuitoron, insinuando vícios homossexuais, desfazendo-lhe na miopia e insistindo na sua crueldade: não há homem nem mulher que non queirades trager come can. A melhor destas sátiras baseia-se na miopia: Comi ontem em casa do rei. Nunca os vossos olhos viram tal pão nem vinho como eu lá bebi! De dez anos para cá, nunca vistes um capão como aquele, nem melhor cabrito nem tal lombo de vinh’e d’alhos e de sal. Não, nunca vistes um homem comer como eu comi. Não me faltou nada: non vistes nen avedes de veer. Chega a ser cruel.

Porém Vuitoron era partidário del-rei Sancho II. Daqui nasce parte do seu ódio a Estêvão. E tem, ou parece ter, o gosto equívoco de insinuações homossexuais. Estêvão da Guarda era de Aragão. Isso não o impedia de atirar remoques ao seu patrício Miguel Vivas, chanceler-mor del-rei Afonso IV e bispo eleito de Viseu, a partir de 1330. Ironicamente, jogueta com o verbo privar: conforme o proveito que me vier da vossa privança, rogo eu a Deus que sejades privado.

O favor real fazia perder a cabeça a muita gente e o monarca tinha de os pôr no seu lugar: Pois Fulano mais vale sendo pobre e sem poder, então que volte ao que era e torne a ganhar juízo. Pertence ainda a Estêvan da Guarda esta graça posta na boca do rei. Voltando, porém, a Miguel Vivas, temos contra ele um serventês a descrever-nos a fisionomia do bispo, como dum grande beberrão, de penca vermelha:

Eu convidei un prelado a jantar, se ben me venha.

Diz el en est’: E meus narizes de color de bereguenha?

Vós avede-los alhos verdes, e matar-m’íades con eles!

O jantar está guisado e, por Deus, amigos, trei-nos.

Diz el en est’: E meus narizes color de figos çofeinos?

Vós avedes os alhos verdes, e matar-m’íades con eles!

Alhos e não olhos. Quem matava não eram uns lindos olhos verdes, mas esses alhos que levavam um homem a comer de mais. E o bispo vai-se preocupando com as cores do nariz: E o meu nariz cor de escarlata roxa? E o meu nariz cor de rosa bastarda? E o meu nariz cor de púrpura escura? E o meu nariz cor de amoras maduras?» In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.

 Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT

JDACT, Mário Martins, Literatura, Cultura e Conhecimento, Instituto Camões,