NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.
Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126
«(… ) Os casamentos são as famílias
que os decidem, não os filhos ou as filhas! Sempre foi assim e sempre assim será.
Eu também não decidi casar com meu marido, foi ordem de meu pai e aceitei. Chamoa
e Maria olharam para ela com um silêncio respeitoso, e na cara de Gomes Nunes
Pombeiro surgiu finalmente um sorriso esperançado, quando a sua esposa
prosseguiu com convicção naquele caminho, que se afigurava bem mais seguro. Quando
nos escolhem noivo, não o amamos. Muitas vezes, nem sequer o conhecemos! Mas
isso não é o mais importante, o fundamental é ter filhos, tratar das terras,
preservar a família. O encantamento e o amor são bonitos, mas não duram uma
vida, como um casamento religioso! Para surpresa das filhas, Elvira continuou: Além
disso, mesmo casados, podemos ter amigos, desde que ninguém saiba.
As filhas ficaram chocadas com
aquelas ousadias. Ao vê-las assim, Elvira enxofrou-se, indignada. Achais que os
maridos são fiéis às esposas? Nem o vosso pai! Gomes Nunes Pombeiro baixou os
olhos, envergonhado, e a sua cônjuge, indo ainda mais longe, confessou um
antigo pecadilho: Também eu já me amiguei. Irritado, o seu marido criticou-a: Elvira,
não tendes de o dizer! Olhai que ainda perco a paciência! A sua esposa encolheu
os ombros, e suspirou. Vivemos tempos de perdição, alguns afirmam que estamos
pior do que os romanos. Por isso vos digo, minha filha, não vos incomodeis.
Podereis ver o príncipe em segredo. Sim, tereis filhos do Paio Soares, se ele
os conseguir gerar, mas podereis tê-los também do príncipe, que vosso marido
nem vai dar por isso! Os homens são uns palermas. Gomes Nunes Pombeiro franziu
o sobrolho, incomodado, e preparava-se para contestar a mulher, mas esta
antecipou-se: Já vos jurei que Maria e Chamoa são vossas filhas!
Chamoa soube que, a partir
daquela hora, o seu destino estava traçado. Os pais haviam decidido casá-la com
Paio Soares e, embora a possibilidade de encontros furtivos com o príncipe
estivesse aberta, com a bênção deles, ao longo da noite a sua dor persistiu e
voltou a uivar, o que levaria alguns populares de Viseu a baptizarem-na de
Loba, em homenagem àqueles sons e aos rumores que corriam sobre a tarde passada
com o príncipe. A seu lado e até a madrugada nascer, só ficou a minha Maria
Gomes, de rosário na mão, dividida entre a piedade que sentia pela irmã e a
clara noção da sua própria sorte. Pobre Chamoa. Eu, pelo menos, amo o Lourenço.
Era assim que pensava a minha mulher, e tinha razão em fazê-lo. Trair um amor tão
intenso é sempre muito perigoso, como o futuro se encarregou de mostrar.
O meu melhor amigo contou-me que,
na véspera destes acontecimentos, ao final da tarde, se dirigira a casa da mãe
e haviam conversado em segredo. Ele revelara o encontro com Chamoa e o desejo
de casarem. Ainda desiludida com o amuo forçado de Paio Soares (e também com o
teimoso segredo deste sobre a relíquia), dona Teresa estava relutante em
dar-lhe mais benesses, e o príncipe defendera que, sem provas da sua lealdade,
era prematuro encontrar-lhe esposa.
Dias depois, quando falámos sobre
isto, viríamos a concluir que a rainha enganou o próprio filho. Aterrara-se
quando Afonso Henriques justificou o casamento com Chamoa como a verdadeira união
da Galiza com Portugal. Mas, naquele momento de rara concordância e até com um
vislumbre de afecto, a ardilosa mãe prometera cancelar o anúncio de casamento
de Paio Soares, enquanto o filho adiava a declaração pública de amor a Chamoa,
para não ofender o rico-homem da Maia. O encontro de sábado terminara assim,
cordial e respeitoso, mas o anúncio de Domingo de Páscoa revelara-se uma
violenta negação desse acordo. Sem sequer avisar o filho, dona Teresa praticara
o oposto do que prometera um dia antes! A fúria do príncipe, contida no início,
crescera como uma tempestade destemperada, enquanto se refugiara o resto da
tarde, silencioso e solitário, no seu quarto, ouvindo ao longe os uivos da sua
amada. Quando a noite caiu sobre Viseu, vi-o atravessar o pátio em passadas largas
e entrar pela casa de dona Teresa, subindo aos seus aposentos». In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras,
LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,