sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «… Paio Soares (e também com o teimoso segredo deste sobre a relíquia), dona Teresa estava relutante em dar-lhe mais benesses, e o príncipe defendera que, sem provas da sua lealdade, era prematuro encontrar-lhe esposa»


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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126

«(… ) Os casamentos são as famílias que os decidem, não os filhos ou as filhas! Sempre foi assim e sempre assim será. Eu também não decidi casar com meu marido, foi ordem de meu pai e aceitei. Chamoa e Maria olharam para ela com um silêncio respeitoso, e na cara de Gomes Nunes Pombeiro surgiu finalmente um sorriso esperançado, quando a sua esposa prosseguiu com convicção naquele caminho, que se afigurava bem mais seguro. Quando nos escolhem noivo, não o amamos. Muitas vezes, nem sequer o conhecemos! Mas isso não é o mais importante, o fundamental é ter filhos, tratar das terras, preservar a família. O encantamento e o amor são bonitos, mas não duram uma vida, como um casamento religioso! Para surpresa das filhas, Elvira continuou: Além disso, mesmo casados, podemos ter amigos, desde que ninguém saiba.

As filhas ficaram chocadas com aquelas ousadias. Ao vê-las assim, Elvira enxofrou-se, indignada. Achais que os maridos são fiéis às esposas? Nem o vosso pai! Gomes Nunes Pombeiro baixou os olhos, envergonhado, e a sua cônjuge, indo ainda mais longe, confessou um antigo pecadilho: Também eu já me amiguei. Irritado, o seu marido criticou-a: Elvira, não tendes de o dizer! Olhai que ainda perco a paciência! A sua esposa encolheu os ombros, e suspirou. Vivemos tempos de perdição, alguns afirmam que estamos pior do que os romanos. Por isso vos digo, minha filha, não vos incomodeis. Podereis ver o príncipe em segredo. Sim, tereis filhos do Paio Soares, se ele os conseguir gerar, mas podereis tê-los também do príncipe, que vosso marido nem vai dar por isso! Os homens são uns palermas. Gomes Nunes Pombeiro franziu o sobrolho, incomodado, e preparava-se para contestar a mulher, mas esta antecipou-se: Já vos jurei que Maria e Chamoa são vossas filhas!

Chamoa soube que, a partir daquela hora, o seu destino estava traçado. Os pais haviam decidido casá-la com Paio Soares e, embora a possibilidade de encontros furtivos com o príncipe estivesse aberta, com a bênção deles, ao longo da noite a sua dor persistiu e voltou a uivar, o que levaria alguns populares de Viseu a baptizarem-na de Loba, em homenagem àqueles sons e aos rumores que corriam sobre a tarde passada com o príncipe. A seu lado e até a madrugada nascer, só ficou a minha Maria Gomes, de rosário na mão, dividida entre a piedade que sentia pela irmã e a clara noção da sua própria sorte. Pobre Chamoa. Eu, pelo menos, amo o Lourenço. Era assim que pensava a minha mulher, e tinha razão em fazê-lo. Trair um amor tão intenso é sempre muito perigoso, como o futuro se encarregou de mostrar.

O meu melhor amigo contou-me que, na véspera destes acontecimentos, ao final da tarde, se dirigira a casa da mãe e haviam conversado em segredo. Ele revelara o encontro com Chamoa e o desejo de casarem. Ainda desiludida com o amuo forçado de Paio Soares (e também com o teimoso segredo deste sobre a relíquia), dona Teresa estava relutante em dar-lhe mais benesses, e o príncipe defendera que, sem provas da sua lealdade, era prematuro encontrar-lhe esposa.

Dias depois, quando falámos sobre isto, viríamos a concluir que a rainha enganou o próprio filho. Aterrara-se quando Afonso Henriques justificou o casamento com Chamoa como a verdadeira união da Galiza com Portugal. Mas, naquele momento de rara concordância e até com um vislumbre de afecto, a ardilosa mãe prometera cancelar o anúncio de casamento de Paio Soares, enquanto o filho adiava a declaração pública de amor a Chamoa, para não ofender o rico-homem da Maia. O encontro de sábado terminara assim, cordial e respeitoso, mas o anúncio de Domingo de Páscoa revelara-se uma violenta negação desse acordo. Sem sequer avisar o filho, dona Teresa praticara o oposto do que prometera um dia antes! A fúria do príncipe, contida no início, crescera como uma tempestade destemperada, enquanto se refugiara o resto da tarde, silencioso e solitário, no seu quarto, ouvindo ao longe os uivos da sua amada. Quando a noite caiu sobre Viseu, vi-o atravessar o pátio em passadas largas e entrar pela casa de dona Teresa, subindo aos seus aposentos». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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