De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado
Tentações do Demónio
«(…) Torna o viajante a Vila
Real, e agora, sim, cumprirá os ritos. O primeiro será Mateus, o solar do
morgado. Antes de entrar, deve-se passear neste jardim, sem nenhuma pressa. Por
muitos e valiosos que sejam os tesouros dentro, soberbos seríamos se desprezássemos
os de fora, estas árvores que do espectro solar só descuidaram o azul,
deixam-no para uso do céu; aqui têm todos os tons do verde, do amarelo, do
vermelho, do castanho, roçam mesmo as franjas do violeta. São as artes do
Outono, esta frescura debaixo dos pés, esta alegria maravilhosa dos olhos, e os
lagos que reflectem e multiplicam, de repente o viajante cuida ter caído dentro
dum caleidoscópio, Viajante no País das Maravilhas.
Dá por si olhando de frente o palácio.
É uma beleza maltratada em rótulos de garrafas de um vinho sem espírito, mas
que, por graça de Nasoni, seu arquitecto, se mantém intacta. Coisas assim não
se descrevem, e, se é certo ser o viajante mais sensível às simplicidades românicas,
também é capaz de não cair em teimosias estultas. Por isso não resiste a esta
graça cortesã, ao golpe de génio que é a ocupação do espaço superior com uns pináculos
à primeira vista desproporcionados. O pátio parece acanhado, e é, afinal, o
primeiro sinal da intimidade interior. As grandes lajes de granito ressoam, o
viajante sente ali o grande mistério das casas dos homens. Lá dentro, é o que
se espera: o quadro, o móvel, a estátua, a gravura, uma certa atmosfera de
sacristia galante lutando contra as ponderosas erudições da biblioteca. Aqui
estão as chapas das gravuras originais de Fragonard e Gérard para a edição dos Lusíadas, e quem for fácil
de satisfazer em matéria de arroubos pátrios encontrará autógrafos de
Talleyrand, Metternich, Wellington, também de Alexandre, czar da Rússia, todos
agradecendo a oferta do livro que não sabiam ler. Com todo o respeito, o
viajante considera que o melhor de Mateus ainda é o Nicolau Nasoni.
O
mundo não está bem organizado. Já não é só a complicada história do que falta a
uns e sobeja a outros, é, para este caso de agora, o grave delito de não se
trazer a esta estrada todos os portugueses de aquém e de além, para que nos
seus olhos ficasse a formidável impressão destas encostas cultivadas em
socalcos, cobertas de vinhas de cima a baixo, a grafia dos muros de suporte que
vão acompanhando o fluir do monte, e as cores, como há-de o viajante, em prosa
de correr, dizer o que são estas cores, é o jardim do solar de Mateus alargado
até ao horizonte distante, é a floresta junto do rio Tuela, é um quadro que
ninguém poderá pintar, é uma sinfonia, uma ópera, é o inexprimível. Por isso
mesmo quereria ver nesta estrada um desfile ininterrupto de compatriotas,
sempre por aí abaixo até Peso da Régua, parando para dar uma ajuda aos
vindimadores de monte acima, aceitando ou pedindo um cacho de uvas, cheirando o
mosto dos lagares, metendo nele os braços e tirando-os tintos do sangue da
terra. O viajante tem destes devaneios, e espera que lhos desculpem, porque são
de fraternidade». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora,
Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,