Condenações e punições
«(…)
Édito dos imperadores Graciano, Valentiniano (II) e Teodósio Augusto, ao povo da
cidade de Constantinopla. Queremos que todos os povos governados pela administração
da nossa clemência professem a religião que o divino apóstolo Pedro deu aos
romanos, que até hoje foi pregada como a pregou ele próprio, e que é evidente
que professam o pontífice Dámaso e o bispo de Alexandria, Pedro, homem de
santidade apostólica. Isto é, segundo a doutrina apostólica e a doutrina
evangélica cremos na divindade única do Pai, do Filho e do Espírito Santo sob o
conceito de igual majestade e da piedosa Trindade. Ordenamos que tenham o nome
de cristãos católicos quem siga esta norma, enquanto os demais os julgamos
dementes e loucos sobre os quais pesará a infâmia da heresia. Os seus locais de
reunião não receberão o nome de igrejas e serão objecto, primeiro da vingança
divina, e depois serão castigados pela nossa própria iniciativa que adoptaremos
seguindo a vontade celestial. Dado o terceiro dia das Kalendas de Março em
Tessalónica, no quinto consulado de Graciano Augusto e primeiro de Teodósio
Augusto.
Antes da emissão desse édito, a
Igreja não era apoiada por nenhum mecanismo em particular que justificasse a
visão de algo que ameaçasse a sua soberania. Com esse documento, a divisão
entre a Igreja cristã e o estado romano se tornou ténue, e uma das consequências
foi o compartilhamento dos poderes de estado das forças que mantinham a ordem
pertencentes às autoridades ligadas às duas instituições. Essa nova autoridade
eclesiástica deu à Igreja o poder de pronunciar sentenças de morte sobre aqueles
que julgava serem heréticos. Por cerca de cinco anos após a oficialização do
lado criminoso da heresia pelo imperador, foi executado o primeiro herético
cristão, um bispo hispânico chamado Prisciliano (340-385), fundador do
priscilianismo e executado por oficiais romanos.
Em termos gerais, tratava-se de
uma doutrina que incentivava a Igreja a abandonar a opulência e a riqueza para
se reunir com os pobres. Condenava a escravidão, atribuía ampla liberdade e
importância para as mulheres e abria as portas dos templos para elas assumirem
seus papéis como participantes activos. O primeiro texto de tal doutrina
conhecido foi escrito por Egeria, uma monja galega que viveu por volta do ano
381. Por anos, após a Reforma Protestante, no século XVI, as Igrejas daquele
movimento também se dedicaram a executar supostos hereges como podem atestar os
julgamentos de bruxas na cidade norte-americana de Salem, em Massachusetts.
O último herético executado por
uma sentença católica foi Cayetano Ripoll (1778-1826), um professor espanhol
enforcado e acusado de não acreditar nos dogmas católicos. Foi a última vítima
da inquisição espanhola. Apesar da verdadeira devassa que os historiadores já
fizeram em várias fontes conhecidas, ainda não é possível apontar com certeza o
número de vítimas executadas pelos mandos e desmandos de várias autoridades
eclesiásticas, mas estima-se que chegue a alguns vários milhares. Para alguns,
por causa da forte conotação negativa associada ao termo, a palavra heresia passou
a ser usada com menos frequência nos dias modernos. Há, entretanto, algumas
excepções, como no caso de Rudolf Bultmann (1884-1976), um teólogo alemão que
praticamente definiu a separação entre história e fé, chamada de demitologização, definida
como tentativa hermenêutica de analisar o significado real da linguagem
mitológica usada na Bíblia, em especial no Novo Testamento, ou nos ainda
persistentes debates que envolvem as ordenações de mulheres e homossexuais.
As
Heresias em outras religiões
É claro que, para a maioria das
pessoas esclarecidas, o que passa pela cabeça é descobrir se a questão da
heresia é uma exclusividade católica, ou melhor, cristã, ou se é possível
encontrar tal conceito nas demais grandes religiões. Para tanto, vamos dar uma
olhada em como tal conceito é encarado pelos judeus e muçulmanos. No judaísmo,
o ortodoxíssimo possui alguns pontos de vista que diferem dos princípios
tradicionais de fé. Os grupos mais ligados ao tradicionalismo afirmam que todos
os judeus que rejeitam o significado simples das 13 Maimónides, corrente
fundada por Moisés Maimónides, 1135/1137/1138-1204, que contém muitos dos
preceitos da fé judaica, são considerados como herege». In Sérgio P. Couto, Os Arquivos
Secretos do Vaticano, da Inquisiçãoà renúncia de Bento XVI, Editora Gutenberg,
2013, ISBN 978-856-538-385-1.
Cortesia de EGutenberg/JDACT
JDACT, Sérgio P. Couto, Vaticano, Religião, Conhecimento,