segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Disse que se chamava Elvira e sorriu levemente quando Ramiro lhe perguntou onde podia encontrar uma montada. Ides roubar um cavalo? Não era boa ideia, explicou, amanhã seria procurado como ladrão»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126

«(… ) Nem isso fez recuar o príncipe, que reafirmou, convicto: É como vos digo. Só irei a Ricobayo se me casar com Chamoa. Preocupado, Fernão Peres murmurou: Isso é a guerra. Que seja, ripostou Afonso Henriques. E se a temeis, minha mãe sabe como pará-la. De cabeça perdida, a rainha enfureceu-se e apontou o dedo ao filho: Ainda não chegou o vosso tempo. Chamoa vai casar com Paio Soares e ireis a Ricobayo! São as minhas ordens, sou a rainha! Afonso Henriques, cada vez mais furioso, ripostou com desdém: Não, minha mãe, não sois uma rainha. Sois apenas uma condessa mentirosa, e não farei o que me ordenais! Irado, deu meia-volta e saiu, fechando a porta com estrondo. Na sala, deu de caras com as suas irmãs, Bermudo e as três mouras. Urraca Henriques ainda tentou acalmá-lo, dizendo: Meu irmão, não vos zangueis com nossa mãe!

Porém, o descontrolo apoderou-se dele. Aproximou-se de uma arca e com um gesto brusco levantou-a e atirou-a à parede. Depois, num acesso de cólera imparável, pegou num banco corrido e lançou-o contra a porta do quarto da mãe. De seguida, dirigiu-se a uma mesa, onde estavam inúmeras escudelas de barro, e varreu-as com o braço para o chão, onde se desfizeram em cacos. As únicas pessoas que se aproximaram foram Sancha Henriques e Fátima, mas logo que as viu perto o príncipe ergueu o braço e preparava-se para o descer quando Fátima, entredentes, o provocou: Não lutais com mulheres, já sabeis que perdeis.

Aquela antiga lembrança pareceu desequilibrá-lo e, enfurecido, deu meia-volta e saiu do quarto. Desceu as escadas a correr, pregando no final um violento pontapé na porta, que saltou das dobradiças. A sua fúria parecia impossível de estancar, e atravessou o pátio às biqueiradas em barris e fardos de palha. Por fim, entrou de rompante na casa onde pernoitava e logo saiu de volta, com uma espada na mão. Colérico, vergastou o alpendre, sulcando as vigas de madeira, e trespassou mais barris e fardos, desvairado e aos urros: Canalhas, malditos! Só perante a chegada de meu pai, Egas Moniz, o meu melhor amigo acalmou e suspendeu aquelas brutais investidas. Eu estava na varanda, e vi-o a arfar e a ranger os dentes. Meu pai e ele ficaram a olhar um para o outro calados, como se soubessem que um novo tempo, conturbado e perigoso, iria começar. Depois, estranhamente sereno, Afonso Henriques disse a meu pai, antes de entrar em casa: Preparai-vos para a guerra.

Meu pai ficou no alpendre, pensativo, a mirar a habitação da rainha, no interior da qual se via ainda a luz trémula das velas. Depois, minha prima Raimunda apareceu, vinda do escuro onde se escondia para todos espiar, e quando se preparava para entrar meu pai apenas lhe disse: Hoje não, deixai-o sozinho.

Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126

Quando se soube da sua partida, suspeitei de que Ramiro decidira fugir do pai. É evidente que ele teria preferido mil vezes que Chamoa casasse com o príncipe, pois assim ficaria longe dela, e o seu coração não sofreria tanto. Com aquela decisão da rainha, sentia-se a enlouquecer. Não podia regressar à Maia, seria incapaz de ver Chamoa nas mãos e na cama do seu progenitor. Ao planear a sua escapada, confessou-me tempos mais tarde, lembrara-se de Gondomar. Ouvira-o dizer que partiria de Viseu no domingo e a ideia de se juntar à Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo pareceu-lhe a única saída. Ao fazê-lo, aproximava-se perigosamente do segredo da relíquia, que só seu pai conhecia. Naquela noite, Ramiro levou apenas o arco e as flechas, e correu pelas ruas, saindo por uma das portas da muralha. Já na estrada, além de vários mendigos que se arrastavam, gemendo enregelados, viu uma mulher, que caminhava à sua frente. Era alta e forte, e estava enrolada num manto, para se proteger do frio da noite. Ao ouvir passos, virou-se para ver quem a seguia e Ramiro perguntou-lhe pelos homens de Gondomar. Acho que já partiram, informou ela.

Disse que se chamava Elvira e sorriu levemente quando Ramiro lhe perguntou onde podia encontrar uma montada. Ides roubar um cavalo? Não era boa ideia, explicou, amanhã seria procurado como ladrão. Curiosa, Elvira questionou-o: Porque quereis fugir? Num arremesso de honestidade só possível perante estranhos, Ramiro contou-lhe a verdade. A normanda suspirou, desalentada. Quem me dera ir convosco, mas eles só levam homens. Intrigado, Ramiro perguntou-lhe se estava enamorada de alguém, mas ela apenas encolheu os ombros. Ninguém me quer». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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