terça-feira, 18 de abril de 2023

O Homem de Constantinopla. José Rodrigues Santos. «Havia já algum tempo que não o via por casa. As viagens a Constantinopla tinham-se tornado frequentes na vida de Vahan Sarkisian e Kaloust habituara-se a observá-lo a partir para a capital com os carregamentos que lhes chegavam das caravanas…»

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O Homem de Constantinopla

«(…) O livro com a capa a ostentar o título Hayastan, ou Arménia, com a chancela do patriarcado e leitura recentemente tornada obrigatória na escola arménia de Trebizonda, estava aberto na página que relatava como o rei Tiridates 3º adoptou o cristianismo como religião oficial do país no ano sagrado de 301, o que fez da Arménia a primeira nação cristã do planeta, antes ainda da Etiópia e do Império Romano. A informação confirmava o que o pequeno Kaloust escutara ocasionalmente nas conversas entre adultos e na missa, mas não pôde naquele instante aprofundar o assunto porque o troar aterrorizador de uma voz familiar lhe interrompeu a leitura. Veron! Era o pai que entrava no salão. Obedecendo a uma ordem havia muito interiorizada, Kaloust levantou-se de um salto, juntou os calcanhares e fez uma vénia na direcção do chefe da família, como procedia sempre que ele aparecia na sua presença.

Havia já algum tempo que não o via por casa. As viagens a Constantinopla tinham-se tornado frequentes na vida de Vahan Sarkisian e Kaloust habituara-se a observá-lo a partir para a capital com os carregamentos que lhes chegavam das caravanas provenientes do Cáucaso e da Pérsia. Parece que os tapetes faziam grande sucesso em Constantinopla e que, à custa de ofertas de magníficos exemplares finamente trabalhados, o pai conseguira excelentes contactos no palácio, ao ponto de o sultão em pessoa, por proposta de um conselheiro, o ter nomeado vilayets da Trebizonda e colector de impostos nos vilayets da Mesopotâmia. Mais do que uma honra, esses cargos revelaram-se imensamente lucrativos, tendo reforçado os cofres da família à custa do muito bakshish com que era presenteado em troca dos favores mais ou menos legais que ia concedendo no decurso da sua destacada actividade pública.

Dessa vez Vahan regressava de uma viagem à capital e vinha acompanhado do avô Grigoris, ambos de fez vermelho e bengala e a fumarem charutos aromáticos. Os dois homens cruzaram o salão e instalaram-se nas cadeiras que no ano anterior tinham chegado expressamente de Veneza para mobilar a casa. Ao escutar a voz masculina a trovejar pela casa, a mãe acorreu à sala. Que se passa? Passa-se que o teu marido chegou, mulher!, urrou Vahan com uma gargalhada. E veio com o teu pai!

Vendo o seu próprio pai no salão, Veron estacou e fez, também ela, uma vénia. Senhor. Mas os dois homens não estavam para formalidades. Vinham num estado de grande excitação e depressa a família percebeu porquê. É que traziam novidades na forma de um estranho objecto com a parte baixa feita de metal e a de cima de vidro afunilado. Olha para isto!, exclamou Vahan enquanto exibia o engenho. Fazes ideia do que é? A mulher fixou o objecto com uma expressão intrigada. Um vaso? Os dois homens riram-se com gosto e o dono da casa voltou o objecto para o filho. E tu, Kaloust? Sabes o que é? O pequeno permanecia de pé, como uma sentinela, e sabia que só poderia falar quando o pai lho consentisse. O que sucedeu então. Observou a novidade com cuidado, esforçando-se por lhe descortinar a função. Queria brilhar diante do pai, mostrar-lhe que os seus conhecimentos iam muito para além do que lhe ensinavam na escola, embora não tivesse resposta para a pergunta. Dava a impressão de ser uma engenhoca qualquer, mas a verdade é que nunca vira nada de semelhante na sua curta vida pelo que teve dificuldade em identifica-la. Parece um ... um alambique. Nova gargalhada dos dois homens, ambos imensamente divertidos com o efeito do engenho que haviam trazido para casa.. É uma vela!, anunciou Vahan com orgulho. Serve para iluminar. Mulher e filho cravaram o olhar estupefacto no objecto, na dúvida sobre se o dono da casa lhes estaria a pregar uma partida ou a falar a sério. Uma vela?, admirou-se Veron com um esgar desconfiado. Onde está a cera? Não tem cera, retorquiu o marido. É uma vela moderna. Chamam-lhe candeeiro e é alimentado a óleo mineral». In José Rodrigues Santos, O Homem de Constantinopla, Edições Gradiva, 2013, ISBN 978-989-616-549-9.

Cortesia de EGradiva/JDACT

JDACT, José Rodrigues dos Santos, Literatura, A Arte,