A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…) Ao lado da jovem estava um mastim, vestido com uma indumentária de trovador azul e
amarela. No fundo vermelho da carruagem repousava um cofre de prata. Mas só me
apercebi destes últimos pormenores quando o castelhano ordenou ao cocheiro para
seguir. Afastei-me a observar a cena, como muitas vezes faço para a imprimir
vividamente no que meu tio chama a minha memória de Tora. Quando a porta se
fechou, o fidalgo inclinou-se para mim através da janela e murmurou numa voz
com cheiro a vinho:
Não tenhas medo. O teu amigo não morre durante as festas. E
para os cocheiros gritou: - Toca a andar! Temos aqui um ferido! No meu coração
a curiosidade e a apreensão disputavam-se enquanto os cocheiros chicoteavam os
cavalos. Quem seriam aqueles castelhanos? Saberiam que éramos judeus secretos?!
Estaria o fidalgo a troçar de mim ou antes a revelar-me a sua afinidade? Por
instantes, ainda vi uns dedos tão delicados como os de uma criança agarrados à
janela da carruagem até ela desaparecer ao fundo da rua. Correram então uma
cortina que silenciou as minhas questões.
Encontrei meu tio no pátio, a jogar xadrês com Farid. Tinha
no regaço o xaile cuidadosamente dobrado, com os tefelins por cima. Antes que
as minhas forças sejam dizimadas por este pagão, vamos ao hospital ver se Diego
está a ser bem tratado, disse-me, mal me avistou. Farid, lendo-lhe os lábios,
riu-se. Como queríamos vestir roupas para sair, dirigimo-nos a casa e, ao
entrar na cozinha, perguntei-lhe porque dissera que o ataque a Diego podia ter
sido planeado.
O que é que vive durante séculos, mas que pode morrer ainda
antes de nascer?, perguntou, à laia de resposta. Nada de enigmas, queria era
que me respondesse, disse eu, rolando os olhos.
Ele franziu o sobrolho e dirigiu-se para o seu quarto. Uma
semana mais tarde, descobri a resposta ao paradoxo de meu tio. Tivesse eu
compreendido mais cedo, teria podido mudar em ouro o nosso destino de chumbo? Escolhemos
um caminho que bordejava o rio, pois a inconstância do vento atormentava-nos
agora com o cheiro de uma das esterqueiras da cidade fora das muralhas. Os
cemitérios estavam a abarrotar e ultimamente os escravos africanos que morriam
eram atirados para cima dos montes de esterco. Tudo o que os abutres e os lobos
não conseguiam apanhar a tempo entrava em putrefacção, o que, misturado aos
excrementos, produzia um fedor de pesadelo que nos causticava a pele e os ossos
como algum ácido desconhecido.
Ao passarmos na Porta do Chafariz dos Cavalos, ocorreu-me ao
espírito o arrepio metálico que os portões da judiaria Pequena provocavam
quando encerravam os judeus durante a noite. Um brado vindo de cima fez-nos
voltar. Do cimo dos degraus da Sinagoga, o nosso antigo rabino, Fernando Losa,
fazia-nos sinal para esperarmos. Depois da sua conversão, tinha-se tornado num
mercador de alfaias do culto cristão, sendo mesmo o fornecedor do bispo de
Lisboa, maldito seja. Só nos faltava mais este, resmunguei Que terrível pecado estaremos a expiar?» In Richard
Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN
978-972-004-491-4.
Cortesia de QuetzalE/JDACT
JDACT, Richard Zimler, Judeus, História Local, Conhecimentos,: