A Semente do Ódio (1326-1336)
Castelo de
Albuquerque, Janeiro de 1326
«(…) Inês esqueceu a aflição e ofereceu-se
para ser ela a dar o recado. Fazia de tudo para entrar na câmara de Zulema, onde
frascos com lagartos e outros répteis, ou partes de répteis, brilhavam fantasmagoricamente
à luz de velas, e o ar era tingido de um cheiro agridoce das ervas em raminhos,
que pendiam do tecto. Às veres, Zulema mostrava-lhe as raízes de mandrágoras,
colhidas em noites de lua cheia, as criadas da casa diziam que a moura as apanhava
com a ajuda de um gigantesco cão preto que depois desaparecia, porque se uma mão
humana tentasse o feito o grito estridente da mandrágora matá-lo-ia instantaneamente,
mas Inês nunca vira o cão. Mas, mais do que tudo, Inês gostava dos mapas dos sete
céus e dos sete planetas, e de ouvir ZuJema contar-lhe como eram habitados por anjos,
que moviam os astros, provocando as mudanças das estações. Nos dias em que a moura
estava bem-disposta lia-lhe alto um livro de Ramon Llull que contava como todos
os seres humanos têm um anjo bom para os aconselhar e ajudar a lutar contra o demónio.
Que o seu viesse em auxílio do tio Afonso, pediu baixinho.
Bateu à porta. Não se atrevia a entrar
sem bater. Não ali. Â porta rodou nos guinchos e Inês durante uns instantes ficou
calada.
Zulema era a mulher mais bonita que
alguma vez vira, os cabelos pretos e sedosos, presos num pano de escarlate e ouro,
os braços cobertos de pulseiras, algumas de ouro, outras de pedras, que brilhavam
à luz que entrava pela janela. O tio Afonso dizia-lhe que Zulema era sábia, Zulema
neta de ZuIema, a Astrónoma, que lera nas estrelas que o rei de Aragão
conquistaria Maiorca, e o esperara com o filho na praia, mas os trovadores da
corte de Albuquerque juravam-lhe que não passava de uma bruxa. Mas como podia
ser bruxa se as bruxas eram feias e cresciam-lhes verrugas no nariz? Zulema, ainda
para mais, não gostava de gatos.
Que pressa é essa?, perguntou-lhe
a moura, e a sobrinha dos senhores de Albuquerque recuperou a fala. Que viesse
depressa, o senhor Afonso Sanches precisava dela.
Zulema seguiu-a, observando
curiosamente os seus passos ligeiros. Há seis anos ajudara-a dá-la à luz, fora a
primeira a pegar-lhe ao colo, cortara o cordão em que corria o sangue dos Castro,
observara o alinhamento dos asrros naquela noite,,, E soubera tudo, logo ali.
O terreiro das armas fervilhava de
vozes e do raspar impaciente dos cascos de cavalo, ordens e gritos, e os homens
aqueciam as mãos nas canecas de vinho quente que lhes traziam as criadas, que saíam
da cozinha como formigas num carreirinho. Inês espreitou-os lá de cima, percebendo-os
desanimados e derrotados. Ao longe, o fumo que subia aos céus não deixava dúvidas:
La Codosera ardia, e grandes labaredas de fogo consumiam o restolho dos campos ainda
por semear que rodeavam, lá em baixo, o grande castelo de Albuquerque». In
Isabel Stilwell, Inês de Castro, Espia, Amante, Rainha de Portugal, 2021,
Planeta de Livros Portugal, 2021, ISBN 978-989-777-509-3.
Cortesia de PlanetaLPortugal/JDACT
JDACT, Isabel Stilwell, Inês de Castro, Cultura e Conhecimento,