sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Coração Tão Branco. Javier Marías. «… que não estará a única pessoa que lhe interessa, que ficou em casa com o marido. Essa única pessoa estava na cama, doente, velada pelo marido e às minhas costas»

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«O aniquilamento de cada um, daquele que se conheceu, que se frequentou e que se quis, traz consigo o desaparecimento das respectivas casas, ou nela fica simbolizado. De tal maneira que duas pessoas que tinham o costume de ser cada uma por sua conta e estar num lugar cada uma, acordar só e frequentemente também se deitar só, se encontram de repente artificialmente unidas em seu sono e em seu despertar, em seus passos pelas ruas semivazias em direcção única ou subindo juntos no elevador, não mais um de visita e o outro como anfitrião, não mais um indo buscar o outro ou este descendo para ir encontrar-se com aquele que espera no carro ou a bordo de um táxi, mas ambos sem escolha, com aposentos, elevador e portão que não pertenciam a ninguém e agora são dos dois, com um travesseiro comum pelo qual se verão obrigados a brigar em sonhos e a partir do qual, como o doente, também acabarão vendo o mundo. Como eu disse, já senti esse primeiro mal-estar na primeira etapa da viagem de lua-de-mel, em Miami, cidade asquerosa mas com óptimas praias para recém-casados, e se acentuou em Nova Orléans, no México e mais ainda em Havana, e há quase um ano, desde que regressamos dessa viagem e inauguramos nossa casa de maneira tão artificiosa, ele continuou aumentando ou se instalou em mim, talvez em nós.

Mas o segundo mal-estar apareceu com força lá pelo fim da viagem, isto é, apenas em Havana, de onde em certo sentido provenho, mais precisamente um quarto de mim, pois lá nasceu e de lá veio para Madrid minha avó materna quando era menina, a mãe de Teresa e Juana Aguilera. Foi no hotel em que nos alojamos por três noites (também não tínhamos muito dinheiro e as estadas em cada cidade foram curtas), uma tarde em que Luisa sentiu-se mal enquanto passeávamos, tão mal de repente que interrompemos nossa caminhada e voltamos imediatamente ao quarto, para que ela se deitasse.

Tinha calafrios e um pouco de náusea. Não podia parar em pé, literalmente. Sem dúvida alguma coisa que comera lhe fizera mal, mas então não o sabíamos com suficiente certeza, de modo que no mesmo instante me perguntei se não teria contraído no México alguma dessas doenças que lá atacam tão facilmente os europeus, algo grave como uma ameba.

Os pressentimentos de desastre que tacitamente me acompanharam desde a cerimônia de casamento iam adquirindo diferentes formas, e uma delas foi esta (a menos muda, ou não foi tácita), a ameaça da doença ou a repentina morte de quem ia compartilhar comigo a vida, o futuro concreto e o futuro abstracto, embora eu não tivesse a impressão de que este último houvesse acabado e minha vida já estivesse pela metade; talvez a dos dois, unidos.

Não quisemos chamar logo um médico, preferindo ver se aquilo passava, e a pus na cama (nossa cama de hotel e de casal), e deixei-a dormir, como se aquilo pudesse curá-la. Pareceu adormecer e eu me mantive em silêncio para que descansasse, e a melhor maneira de me manter em silêncio sem me aborrecer nem me ver tentado a fazer barulho ou falar com ela foi pôr-me à sacada e olhar para fora, olhar a gente havanesa passar, observar seu andar e suas roupas, ouvir suas vozes ao longe, um murmúrio.

Mas olhava para fora com o pensamento dentro, às minhas costas, na cama em que Luisa ficara na diagonal, atravessada, de modo que nada exterior podia chamar sua atenção. Eu olhava para fora como quem chega a uma festa em que sabe que não estará a única pessoa que lhe interessa, que ficou em casa com o marido. Essa única pessoa estava na cama, doente, velada pelo marido e às minhas costas». In Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5

Cortesia do RelógioD’Água/JDACT

JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha, Narrativa,