Prazer e dor na Ciência dos Conhecimentos
Dar
a Palavra aos Sentimentos
«A emoção e o sentimento já
tinham desempenhado um papel importante, embora bem diferente, em dois livros
precedentes. Em O erro de Descartes abordei o papel da emoção e do
sentimento na tomada de decisões. Em O Mistério da Consciência descrevi
o papel da emoção e do sentimento na construção do self. O foco deste novo
livro são os sentimentos propriamente ditos, aquilo que são e aquilo que fazem.
A maior parte dos dados que agora apresento não existiam quando escrevi os
livros anteriores, e temos hoje uma plataforma bem mais sólida para o
entendimento da biologia dos sentimentos. Em suma, a finalidade principal deste
livro é descrever o progresso que se tem feito no entendimento da natureza e
significado humano dos sentimentos, tal como os vejo agora, como neurologista,
neurocientista e consumidor habitual.
Na minha perspectiva actual, os
sentimentos são a expressão do florescimento ou do sofrimento humano, na mente
e no corpo. Os sentimentos não são uma mera decoração das emoções, qualquer
coisa que possamos guardar ou jogar fora. Os sentimentos podem ser, e geralmente
são, revelações do estado da vida dentro do organismo. São o levantar de um véu
no sentido literal do termo. Considerando a vida como uma acrobacia na corda
bamba, a maior parte dos sentimentos são expressões de uma luta contínua para
atingir o equilíbrio, reflexos de todos os minúsculos ajustamentos e correções
sem os quais o espectáculo colapsa por inteiro.
Na existência do dia-a-dia os
sentimentos revelam, simultaneamente, a nossa grandeza e a nossa pequenez.
A forma como a revelação se
introduz na mente só agora começa, ela mesma, a ser revelada. O cérebro dedica
várias regiões que trabalham em concerto a retratar de diversos aspectos as actividades
do corpo sob a forma de mapas neurais. Esse retrato é uma imagem composta da
vida nas suas contínuas modificações. As vias químicas e neurais que trazem ao
cérebro os sinais com que esse retrato da vida é pintado são tão específicas
como a tela que os recebe. O mistério do sentir está se tornando, assim, um
pouco menos misterioso.
É
perfeitamente legítimo perguntar se a tentativa de elucidar os sentimentos tem
qualquer espécie de valor além da satisfação da nossa curiosidade. Não deve surpreender
ninguém que a minha resposta seja afirmativa. Elucidar a neurobiologia dos
sentimentos e das emoções que os percebem altera a nossa visão do problema mente-corpo,
um problema cujo debate é central para a nossa compreensão daquilo que somos. A
emoção e as várias reacções com ela relacionadas estão alinhadas com o corpo,
enquanto os sentimentos estão alinhados com a mente. A investigação da forma
como os pensamentos desencadeiam as emoções e de como as modificações do corpo
durante as emoções se transformam nos fenómenos mentais a que chamamos sentimentos
abre um panorama novo sobre o corpo e sobre a mente, duas manifestações
aparentemente separadas de um organismo integrado e singular». In
António Damásio, Em Busca de Espinosa, Prazer e dor na Ciência dos
Conhecimentos, Companhia das Letras, 2004, ISBN 978-853-590-490-1.
Cortesia de CdasLetras/JDACT
JDACT, António Damásio, Ciência, Espinosa, Filosofia, Conhecimento,