As Fontes Secas. Hauridas. Queimadas
«O narrador prossegue descrevendo
a formação do seu estilo, a história da resolução de inúmeras equações de
terceiro grau, obtendo sempre uma solução inegável, só pelo próprio esforço
intelectual, como se resolvesse a si mesmo perfeitamente, equacionado no papel;
o método completa-se com a audição do Concerto
Brandeburguês nº 5 de Bach, um único concerto, ouvido uma e
outra vez, afinando o estilo do indivíduo na repetição, expurgando o caos
sonoro que alterna loucamente ruídos e silêncios, depois de expurgado o caos
epistemológico usando a matemática. Então, de repente, o argumento vira-se para
a poesia, autocitando-se um excerto da parte VI do poema Elegia múltipla: As crianças enlouquecem em coisas de poesia.
/ Escutai um instante como ficam presas / no alto desse grito, como a
eternidade as acolhe / enquanto gritam e gritam. / (...) / E nada mais somos do
que o Poema onde as crianças / se distanciam loucamente. (Helder,
2015b: 9), opondo as crianças, a loucura e a poesia, dum lado, ao estilo, do
outro; empubescer seria assim, simplesmente, o começo da procura dum estilo,
duma memória, a renúncia à imaginação violenta das crianças, que desejam absolutamente algo a todos os instantes,
sem o compararem com qualquer dos desejos anteriores, esquecendo-os.
A sua loucura, a sua relação
ilógica com o mundo, permite-lhes transformá-lo incessantemente, aceitá-lo
sempre como completamente novo, verdadeira surpresa. E é nesta loucura que a infância
é infeliz, rompendo por todos os lados, fazendo a criança duvidar da sua
própria existência, do próprio mundo, demente, demasiado forte, torturando-a
até ceder, até ter de criar um estilo para se poder travar, apaziguada; por
isso, a infância é tão vertiginosa, recriando-se a todos instantes,
excedendo-se sempre com uma nova loucura totalmente diferente da anterior: bruxaria,
astronáutica, pirataria, policiamento, ladroagem, medicina, infantaria. E, por
sua vez, o poeta reproduz a infância, ou é inventado nesta, porque não pode ser
adulto, simples, idiomático, tem de explodir sempre como uma criança: loucamente.
Como as crianças inventam o Poema que contém os adultos, estilos abandonados que duram
meio-vivos, o poema deve capturar apenas um instante, um grito,
um estilo momentâneo, logo afastado, exilado para sempre: eterno porque
singular, irrepetível; permitindo ao poeta reformar-se de seguida,
dolorosamente, para criar algo novo outra vez. Uma verdade que parece resistir
no mais estilizado dos homens, finalizando o conto esperançosamente: Mas,
escute cá, a loucura, a tenebrosa e maravilhosa loucura... Enfim, não seria
isso mais nobre, digamos, mais conforme ao grande segredo da nossa humanidade?
[...] Talvez o senhor seja mais inteligente do que eu, ou finalizando-se
cruelmente, pois o conflito mantém-se (Talvez), entre a loucura e o
estilo, entre o caos e o contínuo, mantendo o Segredo longe e perto, duplamente
doloroso: ora como uma paixão apartada, ora como uma faca espetada.
Nota: A escolha de
Bach não deixa de ser significativa: pela sua evocação do Barroco,
fundamentalmente antitético (no contraponto, neste caso), excessivo, e pela
obsessão deste compositor, em particular, por fugas: variações sobre uma frase
musical inicial, ritmo esse diversas vezes utilizado pelo poeta, como, por
exemplo, no poema (escrita pouco
inocente).
Esta tensão com a origem, este
perpétuo movimento pendular, será explorado numa imagem recorrente: a mãe, a
fonte: Ela é a fonte. Eu posso saber que é / a grande fonte / em que todos
pensaram. (Helder, 2014: 45); estranho uso do pronome, sem antecedente gramatical
(iniciando o poema Fonte, como este fosse universal: pois o sujeito poético sabe que
a mãe é a fonte, mas não a nomeia nesta parte I do poema (com seis
partes), mesmo descrevendo as irmãs e o pai, evita essa palavra, sublinhando-a
na ausência, recusando a possibilidade de conseguir nomeá-la, de conseguir
descrevê-la: Ninguém falava dela, porque / era imensa, deixando a mãe
como um silêncio debaixo do discurso, como um lençol de água subterrâneo
fertilizando o terreno visível, fertilizando todos em cima, como mãe geral:
Mãe,
como uma cadela alimentando uma ninhada, com o número apropriado de mamilos,
sem necessidade de disputas fraternais: Era um manar / secreto e pacífico,
uma mãe muda, calando os seus filhos por amamentação, ocupando suas bocas,
apaziguadas; na imagem oposta à ruidosa violência infantil. Porque a infância é
a libertação do leite maternal, a liberdade da imaginação, o caos e a guerra
perdida contra este, a dor do crescimento dos dentes para a criança se
alimentar sozinha, rasgando o mundo». In João P. Rodrigues Carvalho, O Poema
Herberto Herder: Caos e Contínuo, Caso de Estudo, Faculdade de Ciências Sociais
e Humanas, FCSH, 2018.
Cortesia de FCSH/JDACT
JDACT, João P. Rodrigues Carvalho, Caso de Estudo, Cultura e Conhecimento, Herberto Helder,