Jerusalém, época actual
«Uns
minutos mais tarde, saiu da via rápida e dirigiu-se a uma estrada que conduzia
a um grupo de casas situadas sobre uma colina. Estacionou o carro em frente a
um edifício de pedra de três andares, idêntico a outros que se erguiam sobre um
terreno rochoso; dali, nos dias claros, conseguia-se ver as muralhas da Cidade
Velha.
Apagou o cigarro no cinzeiro do
carro e respirou fundo. Aquele lugar parecia uma urbanização burguesa, como
tantas outras. Casas de vários andares, rodeadas de jardins ocupados por baloiços
e escorregas para as crianças e carros alinhados junto a passeios impolutos.
Respirava-se tranquilidade, segurança. Não lhe custava imaginar como eram as
famílias que agora viviam dentro daquelas casas, embora soubesse como tinha
sido esse lugar há décadas. Tinham-lho contado alguns velhos palestinianos, com
o olhar perdido nas lembranças daqueles dias nos quais eram eles que viviam
nesse pedaço de terra, porque ainda não tinham chegado os outros, os judeus.
Subiu as escadas. Mal tocou à
campainha, a porta abriu-se. Uma mulher jovem, que nem sequer teria trinta
anos, recebeu-a sorridente. Vestia-se informalmente, com calças de ganga, uma
t-shirt larga e ténis. O seu aspecto era igual ao de tantas outras jovens, mas
ter-se-ia destacado entre milhares pelo seu franco sorriso e o seu olhar
carregado de bondade. Entre, estávamos à sua espera. É a senhora Miller, não é?
Sim. Eu sou a Hanna, a filha do Aaron Zucker. Lamento que o meu pai esteja a viajar,
mas, como insistiram tanto do ministério, o meu avô vai recebê-la. Da minúscula
entrada passaram para uma sala espaçosa e luminosa. Sente-se, vou avisar o meu
avô. Não é preciso, estou aqui. Sou o Ezequiel Zucker, disse uma voz procedente
do interior da casa. Um momento depois apareceu um homem. A senhora Miller
cravou o olhar nele. Era alto, tinha o cabelo grisalho e os olhos de cor
cinzenta; apesar da idade, parecia ágil.
Apertou-lhe a mão com força e
convidou-a a sentar-se. Então a senhora queria ver o meu filho... Na verdade
queria conhecê-los aos dois, embora sobretudo ao seu filho, já que é um dos
principais impulsionadores da política de assentamentos... Sim, e é tão
convincente que o ministério lhe envia os visitantes mais críticos para ele
lhes explicar a política de assentamentos. Bem, estou à sua disposição, senhora
Miller.
Avô,
interrompeu Hanna,se não te importas, vou andando. Tenho uma reunião na
universidade. O Jonas também está prestes a sair. Não te preocupes, eu
desenrasco-me sozinho. De quanto tempo precisa?, perguntou Hanna à senhora
Miller. Tentarei não o cansar... Uma hora, talvez um pouco mais...,respondeu a mulher.
Não há pressa, disse o ancião, na minha idade o tempo não conta. Ficaram sozinhos
e ele reparou na sua tensão. Ofereceu-lhe chá, mas ela recusou. Então, a
senhora trabalha para uma dessas ONG que recebem subsídios da União Europeia. Trabalho
para a Refugiados, uma organização que estuda no terreno os problemas que as
populações deslocadas sofrem devido a conflitos bélicos, catástrofes
naturais... Tentamos avaliar o estado dos deslocados, e se as causas que
provocaram o conflito estão em vias de solução, ou quanto pode durar a sua situação,
e se julgarmos conveniente instamos os organismos internacionais a adoptarem
medidas para atenuar o sofrimento dos deslocados. Os nossos estudos são
rigorosos e por isso recebemos ajuda de instituições comunitárias.
Sim, conheço os relatórios da
Refugiados sobre Israel. Sempre críticos. Não se trata de opiniões, mas sim de
realidades, e a realidade é que, desde 1948, milhares de palestinianos tiveram
de abandonar os seus lares, viram-se despojados das suas casas, das suas
terras. O nosso trabalho é avaliar a política de assentamentos que aumenta o número
de deslocados. Aqui onde nos encontramos, nesta colina, houve uma aldeia
palestiniana da qual não resta nada. Sabe que destino tiveram os habitantes
dessa aldeia? Onde estão agora? Como sobrevivem? Poderão algum dia recuperar o
lugar onde nasceram? O que é que o senhor sabe sobre o seu sofrimento?
Arrependeu-se imediatamente das
suas últimas palavras. Aquele não era o caminho. Não podia mostrar tão
abertamente os seus sentimentos. Tinha de tentar manter uma atitude mais
neutra. Nada de comprazimento, mas de aversão também não. Mordeu o lábio
inferior enquanto esperava pela resposta do homem. Como se chama?, perguntou
ele. Desculpe? Pergunto-lhe o seu nome. É muito impessoal tratá-la por senhora
Miller. A senhora pode tratar-me por Ezequiel. Bem, não sei se é o mais correcto...
Tentamos não confraternizar quando estamos a trabalhar. A minha intenção não é
confraternizar consigo, mas sim que nos tratemos pelos nossos respectivos
nomes. Quer dizer... não estamos no Palácio de Buckingham! A senhora está na
minha casa, é minha convidada e peço-lhe que me chame Ezequiel.
Aquele homem desconcertava-a. Não
lhe queria dizer o seu nome, claro que não pensava tratá-lo pelo dele, mas se
ele decidia dar por encerrada a conversa, então... então teria desperdiçado a
melhor oportunidade que alguma vez ia ter para levar a cabo aquilo que tanto a
atormentava. Marian. Marian? Não me diga... É um nome comum. Não se desculpe
por se chamar Marian. Sentiu raiva. Ele tinha razão, estava a desculpar-se pelo
seu nome, e não tinha motivos para isso». In Julia Navarro, Dispara, eu já estou morto,
Editora Bertrand, 2014, ISBN 978-972-252-905-1.
Cortesia de EBertrand/JDACT
JDACT, Julia Navarro, Literatura, Médio Oriente, Conhecimento,