segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Dona Teresa. Isabel Stilwell. «Os ventos vindos dos cumes nevados infiltravam-se por todas as frinchas, gelando a gente da casa até aos ossos. A noite no Bierzo era assim. Ximena puxou sobre os ombros a capa de urso e, chegando-se mais perto da lareira…»

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Três Irmãs na Corte de Leão (1086-1094

S. Pedro de Montes, Bierzo, Abril de 1086

«De cabeça baixa, os irmãos entoavam baixo as preces, enquanto acendiam as lareiras, cortavam a hortaliça na cozinha, punham as panelas ao lume e abriam as mesas no refeitório, onde hoje o imperador e a família se sentariam a cear. Teresa estava demasiado distraída para prestar atenção a orações.

Quando entrou na sala reservada à família Moniz, viu a mãe e as suas damas, sentadas num banco corrido próximo da lareira, as mãos em copa pousadas sobre o colo, os olhos no imperador, como que hipnotizadas. Afonso VI era alto, muito alto, o cabelo castanho ondulado e bem tratado chegava-lhe aos ombros, a barba era longa, até ao peito. Teresa achava-o igual a Moisés com as tábuas dos mandamentos na mão, tal e qual a imagem que vira num dos grandes livros do mosteiro. Era tão forte, tão bonito, a pele tisnada do sol, apesar de a Primavera ainda agora ter começado.

O imperador, ao reparar nas filhas, abriu os braços para as receber. Teresa procurou conter-se, mas não resistiu, correu para o pai, que a lançou ao ar, soltando uma gargalhada que se confundiu com a dele. Meu cabritinho do monte, disse-lhe o rei, beijando-a e pousando-a no chão, para, de seguida, beijar suavemente Elvira, que, direita e bem-comportada, esperava a sua vez. Dá-me uma espada nova, maior e de lâmina mais afiada?, pediu Teresa, fingindo não perceber o sobrolho franzido da mãe. Afonso soltou uma nova gargalhada: O que é que fizeste à outra? Aprendi a lutar com ela, e já corto as ervas altas de uma vez só, mas não é a mesma coisa do que degolar um mouro, nem matar o inimigo a galope num cavalo. Um dia vou comandar o meu exército, como o imperador comanda o seu, disse a princesa, de um fôlego só.

Os homens de Afonso ergueram as canecas de vinho em saudação, e o imperador sentou a filha sobre o joelho: Só espero que a tua luta não seja contrâ mim, Teresa. A filha olhou-o, como que a medir-lhe a altura e a força, e retorquiu convicta: Não, pelo menos para já não, porque perdia... Afonso fingiu puxar-lhe uma orelha: Se fosse a ti não me atrevia! Mas fico contente que te juntes ao meu exército. Com a notícia de que os almorávidas vão desembarcar a sul, comandados pelo terrível Yusuf ben Tasufin, bem precisamos de que cresças depressa e aprendas a manejar essa espada. Teresa procurou repetir o nome do chefe africano, atrapalhando-se a pronunciá-lo. Ouvindo rir, virou a cabeça zangada paru descobrir quem se atrevia â troçar dela, dando de caras com Alberto, que, aos catorze anos, era o mais novo dos escudeiros do rei.

Alberto corou e fez uma vénia delicada e Teresa pensou, por minutos, se havia ou não de o crucificar. Saltou do colo do pai e, apontando para o rapaz declarou: Da última vez que cá estiveram, o Alberto ensinou-me a usar a espada e a manejar o arco. Pai, pode deixá-lo ficar no Bierzo como meu professor? A vingança servia-se fria. Afonso reparou, divertido, que o pobre escudeiro se engasgava na indignação. Por muito princesa que fosse, quem se imaginava Teresa para dispor assim da sua vida de soldado? Mas antes que o rei pudesse responder, Ximena deu dois passos em direcção à filha mais nova e, pondo-lhe as mãos nos ombros, apertou-os com força, espetando as unhas compridas na sua carne. Teresa sabia bem o que aquilo queria dizer e, procurando esconder a dor, despediu-se do rei, num tom subitamente sóbrio: Parece-me que hoje vou para a cama mais cedo, disse e, beijando a mão do imperador, deixou que a ama a levasse dali para fora.

Os ventos vindos dos cumes nevados infiltravam-se por todas as frinchas, gelando a gente da casa até aos ossos. A noite no Bierzo era assim. Ximena puxou sobre os ombros a capa de urso e, chegando-se mais perto da lareira, onde enormes troncos ardiam, abriu as palmas das mãos para o fogo. Nas labaredas pareceu-lhe ver o seu passado, ela e Afonso, tão felizes e despreocupados, Afonso a oferecer-lhe o anel que até hoje nunca tinha tirado do dedo, Afonso com Teresa nos braços, as laranjeiras em flor». In Isabel Stilwell, Dona Teresa, Livros Horizonte, 2021, ISBN 978-972-242-003-7

Cortesia de LHorizonte/JDACT

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