A primeira grande rainha da Europa
«Todas
enfrentaram os desafios de ser uma soberana em um mundo predominantemente
dominado por homens e todas tiveram reinados longos e transformadores, deixando
legados que seriam sentidos por séculos. Somente Isabel fez isso liderando um
país que emergia do tumultuado fim da Idade Média, utilizando as ideias e os
instrumentos do começo da Renascença para começar a transformar uma nação
indisciplinada e rebelde em uma potência europeia com uma monarquia ousada e
ambiciosa no centro. Ela foi, em outras palavras, a primeira nesse ainda
pequeno clube de grandes rainhas europeias. Para alguns, ela continua a ser a
maior. Não houve na história nenhuma mulher que tivesse suplantado suas
realizações, afirmou o historiador da Espanha Hugh Thomas. Este autor concorda,
pelo menos no que diz respeito às mulheres monarcas e seu impacto no mundo.
As
realizações de Isabel não são apenas notáveis por causa de seu sexo, mas
especialmente por ele. Isabel surgiu depois de mais de um século de crise na
Europa. Em 1346, uma tropa de tártaros, durante um cerco, havia lançado os
corpos cobertos de manchas, devastados pela praga, de vítimas da Peste Negra em
uma guarnição militar genovesa na Crimeia. Os genoveses foram forçados a fugir
em navios que levaram a doença para a Europa, ou assim alegou o genovês
Gabriele de’ Mussi, depois de ver a praga devastar sua cidade natal, Piacenza.
Na verdade, a Peste Negra tomou muitas outras rotas dentro da Europa, onde
ceifou a vida de um terço da população. O facto acelerou a morte do sistema
feudal na maior parte da Europa Ocidental, privando-a de mão de obra e provocando
desde revoltas de camponeses ao abandono de terras produtivas. Então, em 1453,
o belo e arrojado sultão otomano de vinte anos Mehmet II ordenou que seus
navios fossem levados por terra para dentro do estuário Corno de Ouro, isolando
a capital da cristandade oriental, Constantinopla. Esta logo caiu em suas mãos.
Exércitos
muçulmanos, então, completaram sua ocupação da Grécia e de grande parte dos Bálcãs,
assinalando mais um episódio sombrio na história da Europa cristã ocidental. A
explicação para tudo isso, em um mundo dominado pela religião e pela superstição,
era simples e amplamente compartilhada. Deus estava furioso. Sua ira se abatera
sobre um mundo pecaminoso e, em alguns lugares, acreditava-se que Deus havia fechado
as portas do paraíso. Os cristãos há muito sonhavam com um líder mítico e
redentor, o Último Imperador do Mundo, ou o Rei Leão, que recuperaria Jerusalém
e converteria o mundo à verdadeira fé.
Agora, com o islamismo em ascensão
e eles próprios diante de um declínio aparentemente irreversível, precisavam de
tal líder ainda com maior urgência. Os castelhanos desejavam que o grande
salvador da cristandade fosse um de seus próprios monarcas, porém reis fracos
trouxeram constante decepção. Os estrangeiros viam uma Espanha permanentemente imersa
em disputas, como um país envolto em uma escuridão natural, e Castela continuou
sendo uma sociedade volátil e instável. Uma categoria social inteiramente nova,
a dos cristãos-novos ou conversos, ainda estava sendo assimilada entre
frequentes explosões de violência. Os conversos eram os filhos e netos dos que
um dia constituíram a maior comunidade de judeus do mundo, a maioria dos quais
parecia ter sido convertida à força oitenta anos antes.
Nas cidades, uma burguesia
crescente de mercadores de lã, banqueiros, comerciantes e oligarcas locais
lutava para se impor. Em outros lugares, muitos buscavam alcançar ou manter os privilégios
de classe, em geral, personificados pela ampla, ainda que empobrecida,
categoria de hidalgos, cujo nome derivava do termo hijos de algo,
ou filhos de algo. Entretanto, o verdadeiro poder ainda permanecia nas
vastas e isentas de impostos propriedades dos Grandes, ordens militares e
Igreja, que eram também a maior ameaça à autoridade real.
No entanto, em um continente
dividido em dezenas de reinos, cidades-Estados, principados e ducados belicosos,
Castela era um dos poucos países com potencial para produzir um líder que
pudesse reverter a debilitada sorte da cristandade ocidental. Grandes rebanhos
de carneiros da raça merino, resistentes e de lã fina de excelente qualidade,
cerca de cinco milhões de cabeças, haviam transformado Castela no que um historiador
chamou de a Austrália da Idade Média, com lã sendo enviada para
sofisticados centros têxteis do Norte da Europa. Em Roma, a capital espiritual
da Europa, o papa tinha absoluta consciência da importância dessa riqueza, já
que a Ibéria era responsável por um terço da renda do papado.
Ninguém
jamais imaginara que o Último Imperador do Mundo seria uma mulher, mas Isabel,
em aliança com seu marido, o rei Fernando de Aragão, fez mais do que qualquer
outro monarca de sua época para reverter o declínio da cristandade. Apesar
disso, Isabel permaneceu admirada por quase toda a Espanha. Há muitas razões
para isso. Uma foi o uso que ela fez da violência. Esta é uma arma legítima e
necessária para o exercício do poder, mas geralmente é considerada perturbadora
quando usada por uma rainha, como se aquelas que usurpam o papel masculino de
liderança fossem guiadas por forças malignas e obscuras que anulam uma
feminilidade supostamente natural e amável. Isabel não tinha nenhum escrúpulo
em empregar a violência, sentindo a mão de Deus por trás de cada golpe
desfechado em seu nome». In Giles Tremlett, Isabel de Castela,
Editora Rocco, 2018, ISBN 978-853-253-099-8.
JDACT, Giles Tremlett, Espanha, Cultura, Conhecimento,