«As coisas bonitas, as obras de arte, os objectos sagrados, sofrem, como nós, os efeitos irreparáveis do passar do tempo. No mesmo instante em que seu autor humano, consciente ou não de sua harmonia com o infinito, lhes põe ponto final e as entrega ao mundo, começa para elas uma vida que, ao longo dos séculos, as aproxima também da velhice e da morte. Com certeza, esse tempo que a nós nos envelhece e destrói, a elas confere uma nova forma de beleza que a velhice humana não poderia sequer sonhar em alcançar; por nada do mundo queria ver reconstruído o Coliseu, com todos os seus muros e grades em perfeito estado, e não daria nada por um Parthenon pintado de cores vivas ou uma Vitória da Samocrácia com cabeça. Profundamente absorta em meu trabalho, deixava fluir de maneira involuntária estas ideias enquanto acariciava com as pontas dos dedos uma das ásperas quinas do pergaminho que tinha em frente a mim. Estava tão envolvida no que fazia que não escutei as batidas que o doutor William Baker, Secretário do Arquivo, dava em minha porta. Tampouco ouvi girar a maçaneta, mas o caso é que, quando vim a me dar conta, já estava na entrada do laboratório. Doutora Salina, murmurou Baker, sem se atrever a ultrapassar o umbral. O Reverendo padre Ramondino me pediu que lhe pedisse que fosse imediatamente ao seu escritório. Levantei os olhos dos pergaminhos e retirei os óculos para observar melhor o Secretário, que mostrava em seu rosto ovalado a mesma perplexidade que eu. Baker era um norte-americano miúdo e fornido, desses que, por sua linhagem genética, pode se fazer passar sem dificuldade por europeu do sul, com grossos óculos de armação de osso e uns ralos cabelos, entre ruivos e grisalhos, que ele penteava meticulosamente para cobrir o maior espaço possível de seu pelado e brilhante couro cabeludo. Desculpe doutor, respondi, abrindo muito os olhos. Poderia repetir o que disse? O Reverendíssimo padre Ramondino quer vê-la o quanto antes em seu escritório. O Prefeito quer ver... A mim? Não acreditei na mensagem. Guglielmo Ramondino, número dois do Arquivo Secreto Vaticano, era a máxima autoridade executiva da instituição depois de Sua Excelência monsenhor Oliveira e podia se contar nos dedos de uma mão às vezes em que reclamara a presença em sua sala de algum dos que ali trabalhavam. Baker esboçou um leve sorriso e confirmou com a cabeça. E você sabe por que ele quer me ver? Perguntei, acovardada. Não, doutora Salina, mas, sem dúvida, deve ser algo muito importante. Dito o qual, e sem retirar o sorriso de sua boca, fechou a porta com suavidade e desapareceu. Naquele momento eu já sofria os efeitos do que vulgarmente se denomina terror incontrolável: mãos suadas, boca seca, taquicardia e tremor nas pernas. Como pude, me levantei da banqueta, apaguei a lâmpada e dei uma dolorosa olhada nos dois belíssimos códices bizantinos que descansavam abertos, sobre minha mesa. Dedicara os últimos seis meses de minha vida a reconstruir, com ajuda daqueles manuscritos, o famoso texto perdido do Panegírico de São Nicéforo e me encontrava a ponto de terminar o trabalho.
Suspirei
com resignação. Ao meu redor o silêncio era total. Meu pequeno laboratório,
mobiliado com uma velha mesa de madeira, um par de banquetas de pés largos, um
crucifixo sobre a parede e várias estantes repletas de livros, estava situado
quatro andares debaixo da terra e fazia parte do Hipógeo, a área do
Arquivo Secreto à que só tem acesso um número muito reduzido de pessoas, a
seção invisível do Vaticano, inexistente para o mundo e para a história. Muitos
cronistas e estudiosos dariam meia vida para poder consultar algum dos
documentos que passaram por minhas mãos durante os últimos oito anos. Mas, a
mera suposição de que alguém alheio à Igreja pudesse obter a permissão
necessária para chegar até ali era puro sonho: Jamais algum laico tivera acesso
ao Hipógeo e, jamais o teria.
Sobre
minha mesa, além dos suportes, os vários cadernos de notas e a lâmpada de baixa
intensidade, para evitar esquentar os pergaminhos, descansavam os bisturis, as
luvas de látex e as pastas cheias de fotografias de alta resolução das folhas
mais destruídas dos códices bizantinos. Num extremo da mesa de madeira,
retorcido como uma cobra, sobressaia o longo braço articulado de uma lupa onde
estava pendurada, bamboleando, uma grande mão de cartolina vermelha com muitas
estrelas coladas; essa mão era a lembrança do último aniversário, o quinto, da
pequena Isabella, minha sobrinha favorita entre os vinte e cinco descendentes
que seis de meus oito irmãos trouxeram à terra do Senhor. Esbocei um sorriso recordando
à graciosa Isabella: Tia Otávia, tia Otávia, deixe que lhe pegue com esta
mão vermelha!.
O
Prefeito! Deus meu, o Prefeito estava me esperando e eu ali, imóvel como uma
estátua, me lembrando de Isabella! Retirei precipitadamente o jaleco branco,
pendurei-o pelo colarinho em um gancho preso à parede e, apanhando meu cartão
de identificação, em que se via um C bem grande junto a uma horrível
fotografia de meu rosto, saí para o corredor e fechei a porta do laboratório.
Meus funcionários trabalhavam em uma fileira de mesas que se estendiam uns bons
cinquenta metros até às portas do elevador. No outro lado do cimento armado da
parede, pessoal subalterno arquivava e voltava a arquivar centenas, milhares de
registos e legados relativos à Igreja, sua história, sua diplomacia e suas actividades
desde o século II até nossos dias. Os mais de vinte e cinco quilómetros de
estantes do Arquivo Secreto Vaticano dava ideia do volume de documentação
conservada. Oficialmente, o Arquivo só possuía escritos dos últimos oito
séculos; mas, com certeza, os mil anos anteriores, e esses só podem ser
encontrados nos níveis terceiro e quarto dos sótãos, os de alta segurança,
também se achavam sob sua protecção. Procedentes de paróquias, mosteiros,
catedrais ou escavações arqueológicas, assim como dos velhos arquivos do
Castelo Sant’Ângelo ou da Câmara Apostólica, desde sua chegada ao Arquivo
Secreto esses valiosos documentos não voltaram a ver a luz do sol, porque,
entre outras coisas igualmente perigosas, poderia destruí-los para sempre.
Alcancei
os elevadores a passos rápidos, não sem parar um momento para observar o
trabalho de um de meus funcionários, Guido Buzzonetti, que se afanava em uma
carta de Guyúk, grande Khan dos mongóis, enviada ao Papa Inocêncio IV em
1246. Um pequeno frasco de solução alcalina, sem tampa, se achava a poucos
milímetros de seu cotovelo direito, bem ao lado de alguns fragmentos da carta. Guido!
Exclamei, sobressaltada. Fique quieto! Guido me olhou com terror, sem se
atrever sequer a respirar. O sangue fugira de seu rosto e se concentrara pouco
a pouco em suas orelhas, que pareciam dois trapos vermelhos enquadrando um
sudário branco. Qualquer ligeiro movimento de seu braço derramaria a solução
sobre os pergaminhos, provocando danos irreparáveis em um documento único da
história. Ao nosso redor, toda a actividade parara e podia se cortar o silêncio
com uma faca. Apanhei o frasco, fechei e o deixei no lado oposto da mesa.
Buzzonetti,
sussurrei, perfurando-o com o olhar. Apanhe agora mesmo suas coisas e se
apresente ao Vice-prefeito. Jamais consentira num descuido semelhante em meu
laboratório. Buzzonetti era um jovem dominicano que cursara seus estudos na
Escola Vaticana de Paleografia, Diplomática e Arquivística, se especializando
em codiciologia oriental. Eu mesma lhe dera aulas de paleografia grega e
bizantina durante dois anos antes de pedir ao Reverendo Padre Pietro Ponzio,
Vice-prefeito do Arquivo, que lhe oferecesse um posto em minha equipe. Com
certeza, por muito que apreciasse o irmão Buzzonetti, por muito que conhecesse
sua enorme valia, não estava disposta a permitir que continuasse trabalhando no
Hipógeo». In Matilde Asensi, O Último Catão, 2005, Editora Dom Quixote, ISBN
978-972-202-904-9.
Cortesia de EDQuixote/JDACT
JDACT, Matilde Asensi, Literatura, Vaticano, Conhecimento,