«Desgraçadamente, estávamos nas portas de tão espectacular acontecimento e a cidade era um caldeirão de manobras e maquinações por parte das diferentes facções interessadas em colocar seu candidato no Trono de Pedro. O certo é que, no Vaticano, já há muito tempo que se vivia com uma grande sensação de fim de pontificado e ainda que a mim, como filha da Igreja e como religiosa, tal situação não me afectava absolutamente. Já como investigadora com vários projectos pendentes de aprovação e financiamento, me prejudicava muito directamente. Durante o pontificado de João Paulo II, de marcada tendência conservadora, fora impossível levar a cabo determinado tipo de trabalhos de investigação. Em meu foro interno, ansiava que o próximo Santo Padre fosse um homem mais aberto de ideias e menos preocupado em se entrincheirar na versão oficial da história da Igreja, havia tanto material classificado debaixo das epígrafes de Reservado e Confidencial!
Com
certeza, não tinha muitas esperanças de que se produzisse uma renovação
significativa, já que o poder acumulado pelos cardeais nomeados pelo próprio
João Paulo II, durante mais de vinte anos, definia como impossível a eleição no
Conclave de um Papa da ala progressista. Salvo se o Espírito Santo em pessoa
estivesse decidido a uma mudança e exercesse sua poderosa influência em uma
nomeação tão pouco espiritual, ia ser realmente difícil que não saísse eleito
um novo Pontífice do grupo conservador. Nesse instante, um sacerdote vestido
com sotaina negra se aproximou do Reverendo Padre Ramondino, disse algo ao seu
ouvido, e este me fez um sinal, levantando as sobrancelhas, para que me
preparasse: estavam nos esperando e devíamos entrar. As esquisitas portas se
abriram em frente a nós silenciosamente e eu esperei que Prefeito entrasse em
primeiro lugar, como manda o protocolo. Uma sala três vezes maior que a sala de
espera da qual viemos, completamente atulhada com espelhos, molduras douradas e
pinturas, que identifiquei serem de Rafael, decorava o menor escritório que
vira em minha vida: ao fundo, quase invisível para meus olhos, uma mesa
clássica, colocada sobre um tapete e seguida por uma cadeira de espaldar alto,
constituía todo o mobiliário. A um lado da sala, debaixo das esbeltas janelas
que deixavam passar a luz do exterior, um grupo de eclesiásticos conversava
animadamente, ocupando uns pequenos banquinhos que ficavam ocultos debaixo de
suas sotainas. De pé atrás de um daqueles prelados, um estranho e taciturno
laico permanecia à margem da conversa, exibindo uma atitude tão obviamente
marcial que não tenho nenhuma dúvida de que se tratasse de um militar ou um
policial.
Era
terrivelmente alto, mais de um e metro noventa de altura, corpulento e forte
como se levantasse pesos todos os dias e mastigasse vidros nas refeições. Usava
o cabelo ruivo totalmente raspado. Ao nos ver chegar, um dos cardeais, que
reconheci imediatamente como o Secretário de Estado, Ângelo Sodano, se pôs de
pé e veio a nosso encontro. Era um homem de estatura mediana e aparentava uns
setenta e tantos anos, com uma ampla testa, produto de uma discreta calvície, e
com o cabelo branco engomado debaixo do solidéu de seda púrpura. Usava óculos
antiquados, de plástico terroso e grandes vidros de forma quadrangular, vestia
sotaina negra com filetes e botões púrpura, faixa matizada e meias da mesma
cor. Uma discreta cruz peitoral de ouro se destacava sobre seu peito. Sua
Eminência tinha um grande sorriso amistoso quando se aproximou do Prefeito,
para trocarem os beijos de saudação. Guglielmo! Exclamou.
Que
alegria voltar a vê-lo! Eminência! A satisfação mútua pelo reencontro era
evidente. Assim, o Prefeito não fantasiara ao falar sobre sua velha amizade com
o mandatário mais importante do Vaticano, depois do Papa, claro. Cada vez me
encontrava mais perplexa e desorientada, como se tudo aquilo fosse um sonho e
não uma realidade tangível. O que acontecera para que eu estivesse ali? O
restante dos presentes, que também observavam a cena com atenção e curiosidade,
eram o Cardeal Vicário de Roma e presidente da Conferência Episcopal Italiana,
Sua Eminência Carlo Colli, um homem tranquilo de aparência afável; o Arcebispo
Secretário da Segunda Seção, Monsenhor Françoise Tournier, que reconheci por
seu solidéu violeta, e não púrpura, exclusivo dos Cardeais, e o silencioso
combatente ruivo, que franzia as sobrancelhas transparentes como se estivesse
profundamente desgostoso por aquela situação.
De
repente, o Prefeito se voltou para mim e, me empurrando pelo ombro, me adiantou
até me colocar a seu lado, em frente ao Secretário de Estado. Esta é a doutora
Otávia Salina, Eminência, disse como apresentação; os olhos de Sodano me
examinaram de cima a baixo em questão de segundos. Menos mal que nesse dia me havia
vestido decentemente, com uma bonita saia cinza e um conjunto de jersey com
casaco salmão. Uns trinta e oito ou trinta e nove anos bem vividos, rosto
agradável, cabelo curto e negro, olhos negros e mediana estatura. Eminência...
Murmurei ao mesmo tempo em que fiz uma genuflexão e, inclinando a cabeça em
sinal de respeito, beijei o anel que o Secretário de Estado colocara ante meus
lábios. Você é religiosa, doutora? Perguntou após a saudação. Tinha um ligeiro
sotaque do Piamonte. A irmã Otávia, Eminência, se apressou a esclarecer o
Prefeito, É membro da Ordem da Venturosa Virgem Maria. E por que veio laica?
Perguntou o Arcebispo Secretário da Segunda Seção, Monsenhor Françoise
Tournier, desde sua cadeira. Acaso sua ordem não usa hábito, irmã? O tom era
profundamente ofensivo, mas não me ia deixar intimidar. A estas alturas de
minha vida na cidade, a mesma situação já acontecera uma infinidade de vezes e
estava curtida em mais de mil batalhas do gênero. Olhei directamente nos seus
olhos para responder: Não, monsenhor. Minha ordem abandonou os hábitos após o
Concílio Vaticano II. Ah, o Concílio...!» In In Matilde Asensi, O Último
Catão, 2005, Editora Dom Quixote, ISBN 978-972-202-904-9.
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