«Com a nuvem cimeira saturada de água, o cano deixou de sorver, despegou-se da superfície das águas e foi-se recolhendo pelo ar, aproximando-se de nós. Alguns, vendo aquilo chegar-se, entraram em pânico. A gritaria era atordoadora, a fuga para a escada da coberta infrene, os atropelos incontrolados, os desmaios frequentes. A coisa passou com um ruído cavo, um impetuoso torvelinho de vento e chuva que nos deixou descompostos e encharcados, mas tudo isto tão rápido que num instante pareceu acordávamos de um pesadelo, ao vermos tudo quieto, sossegado e calmo, lá muito ao longe uma sombrazinha de negra nuvem com um apêndice pendurado, que fugia, desaparecia, se esfumava. Do fenómeno restava-nos ainda uma surpresa: sobre o tabuado do convés centenas de peíxinhos prateados ainda davam ao rabo e abriam a boca na respiração da agonia. Muito nos alegrou uma tão grande e inesperada pescaria e tão sem trabalho, pois não comíamos havia três dias. Mas não estavam terminadas as nossas provações. Ia a nau a orça ao longo da ilha, logo que nos achámos com bonança procurámos porto onde recuperar e descansar, vimos boiando nas ondas alguns cadáveres de marinheiros que as vagas haviam arrastado pela borda fora durante a tempestade. Muito perturbados ficámos todos à vista deles e eu mais que ninguém ao reparar num que, mais perto do barco, estava de borco com a cara alagada na água e os braços estendidos, inchado. Vestia uma camisola de lã que eu conhecia muito bem. Pérides!, murmurei comovido.
Meu companheiro rezava e eu, como
pagão, recordei o verso de Virgílio: Nudus in ignota, Palinure, iacebis
arena ... Tocava a trombeta da nau. Era o patrão que mandava que nos juntássemos
todos. Rezámos pelos mortos três padre-nossos e três ave-Marias, e cantámos o Salve Regina, dando graças por estarmos
livres de tão graves perigos. Mas como a vida continua e era necessário refazermos
as forças do corpo, daquele peixe que a tromba marítima para nós havia pescado fez-se
uma saborosa caldeirada de que todos comemos gostosamente.
O
Breviário
Assim outrora na
alta Creta se diz que o Labirinto tinha um intrincado caminho de paredes cegas
e um ancípite dolo de mil ruas; falseava os sinais de romper saída um errar sem
retorno e sem emenda.
Apoiado na borda da amurada,
escrevo uma breve nota: Dezanove de Dezembro. Nove horas da manhã. Tomamos
porto a sul da ilha de Càndia. Critas! Critas!, bradava um marinheiro, para que
os passageiros se preparassem para desembarcar. Frei Zedilho, a meu lado,
observa: Estais a ver como eles dizem o nome da ilha? Critas ! Só os Gregos lhe
chamam assim. Ainda hoje entre os latinos dizem Creta, se não lhe querem chamar
Cânàia. Estamos a aportar num lugar de nome Cauda Leonis, que quer dizer cauda
de leão, muito perto de um outro porto, o Porto Seguro, procuradíssimo dos
barcos que vêm de Chipre e de Alexandría. É com grande alegria que tripulantes
e passageiros vemos a terra aproximar-se e enquanto os primeiros se entregam já
à faina do recolher as velas e do ruidoso levantar de âncoras, todos os outros
nos amontoamos na amurada, na expectativa de podermos sair em terra firme.
Para sul, a umas dez léguas,
avista-se a sombra enevoada da ilha também chamada Cauda. Esta ilha e o Porto
Seguro são sítios afamados pela passagem de Paulo de Tarso, em condições de
tempestade e de naufrágio. O lugar em que estamos aportando é abrigado,
resguardado de um lado por umas ilhotas ou sirtes, do outro pela costa áspera,
montuosa, com espessas matas de ciprestes.
A recreação e alívio do
enfadamento recentemente passado são motivo mais que sobejo para todos
desejarmos sair, mas quando nos preparamos para o fazer eis do nosso barco
começam a salvar com alguns tiros cinco outras naus que também se encontram
recolhidas no porto, duas delas francesas de Marselha e as outras três da
Esclavónia. Respondem-nos estas com suas salvas e logo acode em batéis a gente,
que sobe a bordo da nossa a nos ajudar. Outra espécie de ajuda recebemo-la já
quase sol-posto de um mosteiro que fica a duas pequenas léguas daqui e que,
ouvindo as salvas de tiros, enviou dois caloiros a trazerem ao patrão da nau
refresco de pão mole, verdura e fruta de espinho, da qual há muita na ilha. São
de todos nós recebidos com muito gasalhado e mostras de amizade e de que sua
visitação nos é extremamente grata. Despedindo-se de nós, prometem-nos tornar
ao domingo seguinte para nos levarem a visitar o mosteiro». In
Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN
978-989-672-114-5.
JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,