«Apesar de que a ideia de a moça ter sido violentada por um sacerdote cristão lhe repugnasse, Brahim aceitou o trato e a levou consigo para Juviles. Mas, contra os desejos de Brahim, Hernando nasceu forte e com os olhos azuis do padre que havia violado sua mãe. Também sobreviveu à infância. As circunstâncias de suas origens correram de boca em boca, e, embora o povo se tivesse apiedado da moça violada, não sucedeu o mesmo com o fruto ilegítimo do estupro; aquele desprezo foi crescendo ao ver-se a atenção que dedicavam ao garoto o padre Martín e Andrés, maiores até que as que concediam às crianças cristãs, como se quisessem salvar da influência dos seguidores de Maomé o bastardo de um sacerdote.
O meio sorriso com
que Hernando entregou as azeitonas à mãe não conseguiu enganá-la. Ela lhe acariciou
o cabelo com doçura, como fazia sempre que pressentia sua tristeza, e ele,
mesmo na presença de seus quatro meios-irmãos, a deixou fazer: eram poucas as
ocasiões em que sua mãe podia demonstrar-lhe carinho, e todas, sem excepção, se
davam na ausência de seu padrasto.
Brahim se havia
somado sem hesitar à rejeição da comunidade mourisca; seu ódio pelo nazareno de
olhos azuis, o favorito dos sacerdotes cristãos, havia recrudescido à medida
que Aisha, sua mulher, dava à luz seus filhos legítimos. Aos nove anos, ele foi
desterrado para o telheiro, com as mulas, e só comia dentro de casa quando o
padrasto estava fora. Aisha teve de ceder aos desejos do marido, e a relação
entre mãe e filho se dava através de gestos subtis carregados de significado.
Naquele dia, o almoço
estava preparado, e seus quatro meios-irmãos esperavam sua chegada. Até o menor
deles, Musa, de quatro anos, mostrava um semblante duro diante de sua presença.
Em nome de Deus, clemente e misericordioso, rezou Hernando antes de sentar-se
no chão. O pequeno Musa e seu irmão Aquil, três anos mais velho, o imitaram, e
os três começaram a pegar com os dedos, directamente da caçarola, os pedaços da
comida que sua mãe havia preparado: cordeiro com alcachofra brava cozinhados
com azeite, menta e coentro, açafrão e vinagre.
Hernando desviou o
olhar para a mãe, que os observava encostada numa das paredes da pequena e limpa
peça que usavam como cozinha, sala de jantar e quarto provisório de seus
meios-irmãos. Raissa e Zahara, suas duas meias-irmãs, achavam-se em pé junto a
ela, à espera de que os homens terminassem de comer para poderem fazê-lo elas
por sua vez. Ele mastigou um pedaço de cordeiro e sorriu para a mãe.
Após o cordeiro com
alcachofra-brava, Zahara, sua meia-irmã de onze anos, trouxe uma bandeja de
uvas-passas, mas Hernando nem sequer teve tempo de levar algumas à boca: um som
de cascos abafado, distante, o obrigou a levantar a cabeça. Seus meios-irmãos perceberam
o gesto e deixaram de comer, atentos à sua atitude; nenhum dos dois tinha capacidade
de prever com tanta antecipação a chegada das mulas.
A Velha!, gritou o
pequeno Musa quando o som da mula se tornou perceptível para todos. Hernando
apertou os lábios antes de virar-se para a mãe. Eram os cascos da Velha,
parecia confirmar ela com o olhar. Depois ele tentou sorrir, mas a expressão
ficou num esgar triste, similar ao que esboçava Aisha: Brahim estava voltando
para casa.
Louvado seja Deus,
rezou para dar fim à refeição e levantar-se com aborrecimento.
Lá fora, a Velha,
magra, seca, repleta de mataduras e livre de qualquer arreio, o esperava
pacientemente. Venha, Velha, ordenou-lhe Hernando, e com ela se dirigiu para o
telheiro.
O irregular som dos
pequenos cascos do animal o acompanhou enquanto rodeava a casa. Uma vez no interior
do telheiro, jogou-lhe um pouco de palha e acariciou-lhe o pescoço com carinho.
Como foi a viagem?,
sussurrou-lhe enquanto examinava uma nova matadura, que não tinha antes de partir».
In
Ildefonso Falcones, A Mão de Fátima, 2010, Bertrand Editorial, Grandes Romances,
2010, ISBN 978-972-252-226-7.
Cortesia de Bertrand E/JDACT