26 de Março de 2021
«Como se tomasse sabor à língua
ressequida, como se comesse papas imaginárias, abriu e fechou a boca, repetiu
breves estalidos. A seguir, apertou as pálpebras nos olhos e, ao destapá-las, a
penumbra ganhou formas, foi capaz de distinguir a luz que chegaria apenas mais
tarde, o nascer efectivo do dia, luz que haveria de atravessar alguns pontos da
janela fechada e, a partir daí, disparar linhas no ar do quarto, conferindo
dados suficientes para um cálculo de área e volume. Mas ele tinha referências
de maior confiança, conhecimento acumulado sem necessidade de medições, todos
os dias em que despertava naquele quarto. Por orgulho, ignorava ainda o
despertador. Mas existia o tempo e a respiração da mulher, que resvalava ténue
no céu da boca. E o mesmo reconhecimento de pureza, Alice, ligação simples e,
naquele silêncio de sons quebradiços, ligação profunda.
Em passos seguidos, indiferente à
roupa escolhida, dobrada e preparada de véspera, fez o caminho que a cabeça lhe
ditava. Ocupado nessa tarefa, regressou ao seu nome. Regressou ao nome que a
mulher lhe chama todos os dias, o que lhe chamava logo depois de se casarem, com
um ou dois meses de casados, o nome que lhe chamavam na tropa, em Elvas, o nome
que a mãe lhe chamava, a voz da mãe, cada momento em que a voz da mãe se ouvia
de novo, o seu nome entre frases que a mãe dizia pela primeira vez, mas também
o nome que os funcionários lhe chamam, os funcionários mais antigos e os mais
novos, avós, pais, netos, o nome que os clientes lhe chamam, de norte a sul, até
os clientes estrangeiros, e o nome por que é tratado nas ruas de Campo Maior,
que escuta às vezes, quase sussurrado quando alguém dá alerta para a sua
passagem, e o nome que as irmãs lhe chamavam, as manas, e o tio Joaquim, homem
bem falante, e o professor na terceira classe, o seu nome a atravessar a sala
de aula, a luz da sala de aula, o seu nome a atravessar manhãs antigas, e o
nome que o pai lhe chamava, o pai, a maneira como o pai referia o seu nome, os
tons com que o pronunciava, a voz do pai existiu, não foi esquecida, existiu.
Onde existia a voz do pai naquele
instante?
O fato de treino tinha cheiro de
armário. Assim que terminou de vesti-lo, de puxar o fecho do casaco, acertou os
elásticos na cintura. Em sequência, atou as sapatilhas, um pé, outro pé, e
levantou-se devagar, mas com firmeza, sem precisar de se agarrar a nada. Passou
a mão pelo bigode e saiu.
O lume tem de se conformar com
chamas comedidas, sem extravagâncias de grande queima. Pode envolver os
madeiros, dar-lhes uma capa de flama, mas não pode atirar-se à bruta para cima
dos chamiços, por muita sede que lhes tenha. Aqui, este lume tem de cumprir
dois deveres para servir a nossa família. O primeiro são os varões de
farinheiras, chouriços, morcelas, paios e paiolas na chaminé. Esses enchidos
foram enfiados um a um nos varões, que ficaram amparados por dois bancos antes
de serem alçados, distribuídos pelos vários escalões do interior da chaminé. O
segundo encargo deste lume é o púcaro de leite e a cafeteira. Não se pode
deixar o lume avivar muito enquanto estiverem estas carnes a fumar, uma dúzia
de dias pelo menos, mas este leite precisa de algum fogacho para ferver. É por
isso que estou de sentinela, esta cana serve para animar o lume se começa a esmorecer,
mas também para lhe dar uma cacetada se quiser levantar cabelo.
A nata do leite, mal cheguei com
a vasilha, a minha mãe prometeu-me essa iguaria. A noite estava começada, mas
não sei se tinham batido as seis no relógio da igreja matriz. Oferta de mãe,
afeição natural. Se fosse preciso uma razão em voz alta, havia o vigor que a
nata me infundia, gaiato de nove anos a fazer-se, mas ninguém pediu razões». In
José Luís Peixoto, Almoço de Domingo, Quetzal Editores, 2021, ISBN
978-989-722-460-7.
Cortesia de QuetzalE/JDACT
JDACT, José Luís Peixoto, Literatura, Narrativa, Campo Maior, Rui Nabeiro, O Saber,