domingo, 24 de dezembro de 2023

Idade Média. Umberto Eco. «É um longo momento histórico em que se opera o nascimento e a desagregação de um novo império, o carolíngio, em que são postas à prova a tendência para a centralização dos poderes…»

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À maneira de conclusão

«Tomás tem uma visão muito biológica da formação do feto: Deus só introduz a alma no feto quando este adquire, gradualmente, primeiro, a alma vegetativa e, depois, a alma sensitiva. Só nessa altura, num corpo já formado, é criada a alma racional (Summa Theologica, I, 90). A Summa contra Gentiles (II, 89) diz que há uma gradação na geração por causa das formas intermédias de que o feto é dotado, desde o início até à forma final. E eis porque no suplemento à Summa Theologica (80, 4) se lê uma afirmação que hoje soa como revolucionária: depois do Juízo Universal, quando os corpos dos mortos ressuscitarem para que a nossa carne participe na glória celeste (quando, segundo Agostinho, reviverem na plenitude da beleza e completude adulta não só os nados-mortos como, numa forma humanamente perfeita, os próprios caprichos da natureza, os mutilados, os concebidos sem braços ou sem olhos), os embriões não participarão nessa ressurreição da carne. Não fora ainda infundida neles a alma racional e por isso não eram seres humanos. Salta aos olhos de qualquer pessoa que a posição de Tomás é muito diferente da actualmente sustentada em vários ambientes eclesiásticos e parece muito mais próxima das teorias hoje atribuídas à cultura laica. Não é aqui que se deve decidir quem tem razão nesta antiga polémica. Mas o certo é que este episódio deve tornar-nos cautelosos ao falar da Idade das Trevas.

História

Levantam-se questões de não pouca monta quando revemos as vivências do princípio da Idade Média, longa época de decadência assinalada inequivocamente por uma acentuada quebra demográfica. Na verdade, este período deve ser também compreendido como a época em que morre o mundo antigo e se forma lentamente um novo amálgama com os povos bárbaros, com as suas formas de agregação social, as suas línguas, as suas instituições e os seus direitos. É uma época em que se dissemina uma cultura religiosa comum, o cristianismo, que é a religião do Estado no Império Romano a partir de Teodósio (c. 347-395, imperador desde 379), que acabará por modificar profundamente o sentir das populações. É um tempo em que o baricentro da vida política e económica se desloca do Mediterrâneo para o Norte e para o Leste e começa a formar-se a Europa, como hoje a conhecemos, em redor de alguns espaços destinados a dar origem a futuras nações (visigótica, lombarda e franca, por sua vez dividida em Nêustria e Austrásia), embora durante muito tempo o limite oriental fique mais a ocidente do que o que estamos habituados a considerar como limite geográfico. É um longo momento histórico em que se opera o nascimento e a desagregação de um novo império, o carolíngio, em que são postas à prova a tendência para a centralização dos poderes e as forças centrífugas que irão actuar durante muitos séculos, em que se mede a relação de forças entre os príncipes e os papas, entre o Estado e a Igreja, e se avança para a construção de uma nova ordem social e económica baseada no sistema feudal, na grande propriedade fundiária, na hereditariedade dos ofícios, na servidão dos camponeses, que, apesar das muitas e profundas transformações e inovações ocorridas, será o tecido conectivo do continente até ao século XIX. São também os séculos em que gradualmente se define uma identidade europeia perante o islão e o Império Romano do Oriente, que, e não por acaso, é melhor dizer bizantino, e com novas vagas de bárbaros que pressionam as fronteiras orientais. Sendo verdade que qualquer período histórico só pode ser lido com base nas experiências do presente, alguns dos problemas que hoje se apresentam à atenção de políticos, economistas e estudiosos em geral, bem como aos meios de comunicação social e aos homens e mulheres que os enfrentam no dia a dia, chamam diretamente a terreiro justamente a Idade Média». In Umberto Eco, Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.

 Cortesia de PdQuixote/JDACT

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