«Que asneira, me respondeu do chão, sem esboçar a menor intenção de se endireitar nem se envergonhar com a minha presença; olhou para as minhas mãos salvadoras como se fossem duas moscas que esvoaçavam e o perturbavam. Não vê que estou fumando tranquilo? Eia! E brandiu no alto, diante de mim, um cachimbo bem agarrado pelo fornilho. Fumava principalmente cigarro, e esses só fora de casa, mas nela os alternava com cachimbo, como se quisesse completar um quadro que de resto poucos de nós víamos (tampouco o exibia nas festas ocasionais que dava, à maioria improvisadas), devia querer completá-lo para si mesmo: tapa-olho, cachimbo, bigode fino, colete às vezes, era como se, inconscientemente, tivesse ficado colado à imagem dos galãs de sua infância e adolescência, nos anos 30 e 40, não só à de Errol Flynn (por antonomásia e com quem compartilhava o sorriso fulgente), mas à de actores muito mais nebulosos, como Ronald Colman, Robert Donat, Basil Rathbone, e mesmo David Niven e Robert Taylor, que duraram mais tempo, tinha um ar de todos eles, apesar de entre si serem diferentes. E, como era espanhol, em certos momentos recordava os mais morenos, embora mais diferenciados e exóticos Gilbert Roland e César Romero, principalmente o primeiro, cujo nariz era grande e sem curva, como o seu.
E o que faz estirado no chão, se
é que posso saber? Não é que o reprove, Deus me livre, mas fiquei curioso. Só
quero entender seus costumes. Caso isso seja um costume. Fez um resignado gesto
de impaciência, como se minha estranheza lhe fosse sabida e já tivesse dado as mesmas
explicações anteriormente a outros.
Não é nada demais. Faço isso
sempre. Não há nada a ser compreendido e, sim, é um costume meu. Será que a
gente não pode ficar estirado sem ter acontecido nada, só por gosto? E por
conveniência.
Claro que sim, Eduardo, só
faltava essa, o senhor pode fazer equilibrismos se lhe der na veneta. Até com pratos
chineses. Enfiei esse comentário com aleivosia, para deixar claro que sua
postura não era tão normal quanto ele pretendia, não num homem maduro, e pai de
família ainda por cima, pois andar pelo chão é próprio de crianças e bebés, e
ele tinha três em casa. Também não tinha certeza de que aquilo que me veio à
mente se chamava pratos chineses, giram vários ao mesmo tempo na ponta de
diversas varas flexíveis, compridas e finas, cada uma apoiada na polpa de um
dedo, creio, não tenho a menor ideia de como se consegue nem com que propósito.
Deve ter-me entendido, em todo caso.
Mas o senhor tem aqui dois sofás,
acrescentei, e apontei para trás, para o salão, ele estava caído no escritório.
Não teria me alarmado nem um pouco se o encontrasse num deles, inclusive
dormindo ou em transe. Mas no chão, com toda a poeira… Não é o que se espera, desculpe.
Em transe? Eu, em transe? Como em
transe?, Isso parece tê-lo ofendido, mas lhe despontou meio sorriso, como se
também houvesse achado graça. É, bem, era uma forma de falar. Matutando. Em meditação.
Ou hipnotizado. Eu, hipnotizado? Por quem? Como hipnotizado? E agora não pôde
reprimir um fugaz sorriso aberto. Quer dizer auto-hipnotizado? Eu, a mim mesmo?
De manhã? À quoi bon?, arrematou em francês, não eram raras as breves
incursões nessa língua entre os membros instruídos da sua geração e das
precedentes, a segunda que haviam aprendido, em geral. Sim, desde bem cedo me
dei conta de que as minhas gozações não eram mal recebidas, quase nunca ele as
cortava de pronto, mas tendia a acompanhá-las um pouco, se não se demorava mais
não era por falta de vontade, mas só para que eu não tomasse liberdades muito
rapidamente com ele, uma cautela desnecessária, eu o admirava e respeitava demais.
Parou depois do francesismo. Levantou o cachimbo húmido de novo para dar ênfase
às suas palavras: O chão é o lugar mais estável, firme e modesto que existe,
com melhor perspectiva do céu ou do tecto e onde melhor se pensa. E neste não
há sinal de poeira, pontuou». In Javier Marías, Assim Começa o Mal, 2015,
Afaguara, ISBN 978-989-665-008-7.
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