domingo, 28 de janeiro de 2024

Coração Tão Branco. Javier Marías. «Senti-me culpado para com ela, pela espera, por sua queda e por meu silêncio, e também culpado para com Luísa, minha mulher recém-contraída que estava precisando de mim pela primeira vez desde a cerimónia…»

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«Embora eu continuasse sobressaltado, e além disso comecei a temer que os gritos daquela mulata acordassem Luísa às minhas costas, pude observar melhor o rosto, que de facto era de uma mulata bem clara, talvez tivesse uma quarta parte de negra, mais visível nos lábios grossos e no nariz um tanto achatado do que na cor, não muito distinta da cor de Luísa na cama, que passara vários dias bronzeando-se nas praias para recém-casados. Os olhos piscantes da mulher me pareceram claros, cinzentos ou verdes, pelo menos cor de limão, mas talvez, pensei, tenha ganhado de presente umas lentes de contato coloridas, causa de sua visão deficiente. Tinha narinas veementes, alargadas pela ira (tinha cara de velocidade portanto), e mexia a boca em excesso (agora eu teria lido sem dificuldade em seus lábios, se precisasse), com esgares parecidos com os das mulheres de meu país, isto é, de substancial desprezo.

Continuou se aproximando, cada vez mais indignada por não receber resposta, sempre repetindo o mesmo gesto do braço, como se não tivesse outro recurso expressivo além desse, um longo braço nu que dava um golpe seco no ar, os dedos dançando simultaneamente por um instante como para agarrar-me e depois arrastar-me, uma garra. Você é meu ou Eu te mato. Você está abobalhado ou o que foi? Inda por cima ficou mudo? Mas por que você não me responde? Já estava bem perto, avançara pela esplanada uns dez ou doze passos, suficientes para que agora sua voz estridente não só se ouvisse, mas começasse a troar no quarto; suficientes também, achei, para que me visse sem incerteza por mais míope que fosse, portanto parecia indubitável que eu era a pessoa com quem marcara um encontro importante, que a angustiara com meu atraso e a ofendera da sacada com minha vigilância calada que continuava ofendendo-a. Mas eu não conhecia ninguém em Havana, mais ainda, era a primeira vez que estava em Havana, em minha viagem de lua-de-mel com minha mulher tão recente.

Virei-me por fim e vi Luísa erguida na cama, com os olhos fixos em mim mas sem ainda me conhecer nem reconhecer onde estava, aqueles olhos febris do doente que acorda assustado e sem ter recebido aviso prévio de seu despertar no sono. Estava levantada, e o soutien saíra do lugar enquanto dormia, ou então no movimento brusco que acabava de fazer ao erguer-se: estava torcido, tinha descoberto um ombro e quase um seio, com certeza a estava incomodando, devia tê-lo prendido com seu próprio corpo esquecido no mal-estar e no adormecimento.

Que está acontecendo?, perguntou apreensiva. Nada, respondi. Volte a dormir. Mas não me atrevi a achegar-me e acariciar seus cabelos para tranquilizá-la de verdade e para que voltasse ao torpor, como teria feito em qualquer outra circunstância, porque naquele instante eu não me atrevia a abandonar meu lugar na sacada, nem a desviar os olhos por pouco que fosse daquela mulher que estava convencida de ter estado comigo, nem a evitar por mais tempo o diálogo abrupto que da rua se impunha a mim.

Era uma pena que falássemos a mesma língua e eu a compreendesse, porque o que ainda não era diálogo já se tornava violento, talvez porque não o fosse, não fosse diálogo. Eu te mato, filho-da-pu…! Juro que eu te mato aqui mesmo!, gritava a mulher da rua. Gritava aquilo do chão e sem poder me encarar, porque, justo no momento em que eu me virara para dizer a Luísa quatro palavras, um sapato tinha saído do pé da mulata e ela caíra, sem se machucar mas sujando na hora a saia branca. Gritava isto, Eu te mato, e ia se levantando, um tombo, a bolsa sempre pendurada no braço, não a soltara, aquela bolsa ela não soltaria nem que a esfolassem, tentava sacudir-se ou limpar a saia com a mão e estava com um pé descalço, erguido no ar, como se não quisesse de maneira nenhuma pousá-lo e sujar também sua planta, nem as pontas dos dedos sequer, o pé que poderia ver o homem que ela tinha encontrado, vê-lo de perto, em cima, e tocá-lo, mais tarde.

Senti-me culpado para com ela, pela espera, por sua queda e por meu silêncio, e também culpado para com Luísa, minha mulher recém-contraída que estava precisando de mim pela primeira vez desde a cerimónia, ainda que apenas um segundo, o necessário para secar o suor que lhe empapava a testa e os ombros e para ajustar ou tirar o soutien para que não a incomodasse e fazê-la regressar com palavras ao sono que a curaria». In Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5.

Cortesia de RelógioD’Água/JDACT

JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha, Narrativa,