Prólogo
«São agora dez e meia da noite de
um domingo quente de Agosto, e estou no corredor do hospital à espera de más
notícias. O banco de madeira onde me sento é duro, e doem-me as costas, pois já
estou aqui há várias horas. Lá dentro, na sala dos cuidados intensivos, o meu melhor
amigo, Salvador Palma Lobo, está mal, e há qualquer coisa na sua cara que me
mete medo. Tem tubos enfiados na boca, nas narinas e nas veias, e os médicos
dizem que já não está vivo, mas que também ainda não está morto.
Ao lado da sua cama, numa máquina
cinzenta, há uma linha electrónica, verde e nervosa, um sinal de que o seu
coração continua a bater. É um electrocardiograma permanente, que sobe e desce
sem parar, como uma irónica metáfora da vida de Salvador. Eufóricas subidas,
picos íngremes, e depois vertiginosas descidas, fundões abruptos. Uns atrás dos
outros, sem pausas, uma montanha-russa de emoções, uma narrativa extraordinária
que agora está a chegar a um prematuro fim.
Dou por mim a pensar que só podia
ser assim com um homem Palma Lobo. Morreram todos cedo. Bisavô, avô, pai,
Salvador. Nomes diferentes mas o mesmo sangue e muito em comum. Mulherengos,
piratas, excessivos, todos marcados pela loucura e pela tortura da paixão.
Ao longo da tarde deste domingo
quente de Agosto passaram por cá alguns amigos de Salvador, duas das suas
ex-mulheres, Sara e Marina, e uma tia velha, irmã da avó de Salvador. Joana não
apareceu, mas também não a esperava. Não houve visitas de mais familiares
porque Salvador não tem mais família. Nem pai, nem mãe, nem irmão. Morreram antes
dele. E, apesar de ter casado três vezes, também não tem filhos.
Aqueles que cá estiveram
consideram que ele se matou de abusos. Nos últimos tempos bebia de mais, disse
Lourenço; drogava-se de mais, disse Marina; tomava remédios de mais, disse Rui.
Sara, que o conhecia melhor do que os outros, diz que foi a doença mental que o
consumiu, tal como aconteceu ao irmão Luís antes dele. É possível que todos
tenham razão, mas não penso como eles. Para mim, Salvador está mesmo a morrer
de amor. Com a excepção da tia velha, os outros não acreditam. Dizem-me que já
não existem paixões impossíveis e fatais, que isso são coisas do passado. Mas
só o dizem porque não conhecem, como eu conheço, a história de Salvador e de
Joana e as espantosas biografias dos Palma Lobo que o antecederam. Só a tia
velha de Salvador me compreendeu.
É possível, disse ela, o Salvador
era um rapaz muito romântico. Ela ia continuar a falar, mas nesse momento o meu
telemóvel tocou. Era Joana. Queria saber se era verdade o que ouvira dizer.
Disse-lhe que sim, mas não lhe revelei que ele está a morrer de amor por causa
dela. Estás no hospital?, perguntou. Sim. Já cá estiveram o Lourenço, o Rui, a
Marina, a Sara.
Houve um curto silêncio do outro
lado da linha. Joana e Sara odeiam-se. E tu, perguntei eu, nunca mais te vi. Estou
fora de Lisboa... Quem é que te contou do Salvador? Uma amiga. As notícias
corriam depressa. Achas que ele vai morrer?, perguntou Joana. Será que ela
ainda o ama? Será que ela alguma vez o amou? Sim, amou, amou à maneira dela,
amou o que podia e o que sabia. Joana é uma rapariga muito nova, tem o quê, vinte
e dois, vinte e três anos? Perguntei-lhe: Que idade tens? Ela deve ter
estranhado. Porquê? Nada, disse eu. Curiosidade. Vinte e três. Pois, era o que
eu pensava.
Não quis responder à pergunta
dela. Não gostava de falar na morte do Salvador a não ser para lhe dar uma
causa e com a Joana não podia falar disso. A culpa não é dela. Aconteceu assim,
apenas isso. Estás feliz? Não era esta a pergunta que queria fazer. O que
queria era saber se ela tinha namorado. Joana é um ser muito especial. Todos os
homens que a conheceram a desejaram, nem que tenha sido só por um dia ou uma
noite. Qualquer um podia endoidecer com ela. Há mulheres assim. Eu amei-a assim
que a vi. Acho que ainda a amo, mas nunca tive coragem para lho dizer.
Salvador teve coragem e por isso
ela amou Salvador, embora por pouco tempo. Depois deixou-o e ele nunca mais foi
o mesmo. Está tudo bem comigo, respondeu ela. Joana nunca falava muito sobre
si. O Salvador vai morrer apaixonado por ti. Ela ficou em silêncio, talvez
constrangida. Depois disse que voltava a falar e desligou. Tenho a certeza de
que não virá ao hospital. Talvez ainda se sinta culpada. A tia velha de
Salvador olhou para mim e perguntou: Ele gostava dessa rapariga? Eu sorri e
confirmei com um aceno de cabeça: Muito. É ela o motivo do desgosto?
Olhei para a senhora e sorri e
voltei a abanar a cabeça. É de família. Os desgostos estão-lhes no sangue. Ao
ouvi-la, senti que eu e aquela senhora de setenta anos, bonita e distinta,
éramos cúmplices, depositários únicos de um código secreto, pois só nós
sabíamos que os desgostos de amor e a morte estão no sangue dos Palma Lobo. Sei
isso hoje, melhor do que ninguém.
Passei o meu último ano a
investigar a história da família Palma Lobo. Enquanto Salvador, o último dos
Palma Lobo, se autodestruía com drogas e álcool e loucura e se afundava na mágoa
e na tristeza a caminho do fim, eu corria o mundo à procura das histórias dos
seus antecessores. Enquanto, em Lisboa ou no monte de Grândola, Salvador se
matava devagar, eu viajava até Maputo, até Luanda, até ao Rio de Janeiro, em
busca do fio das vidas do seu pai, do seu avô e do seu bisavô.
Sentado neste banco duro, com
dores nas costas, dá-me para pensar na estranha ironia deste destino paralelo.
Eu a ressuscitar os mortos Palma Lobo e o meu melhor amigo a preparar-se para
ir ter com eles. Dá-me para pensar se Salvador não planeou tudo isto desde aquele
dia em que me convidou para almoçar na sua herdade de Grândola, e me fez aquele
surpreendente desafio.
Roberto
Antunes Palma Lobo, 1881-1916
Foi há coisa de um ano. Lembro-me
bem, pois os barracões agrícolas da herdade de Grândola ainda estavam negros,
carbonizados pelo fogo que ocorrera semanas antes, na noite da dramática festa
de anos de Salvador, onde o amor dele e de Joana se estragou para sempre.
Almoçámos ensopado de borrego, e
no final do repasto, já de charuto aceso, o meu amigo lançou-me um desafio: Quero
que escrevas a história dos Palma Lobo.
Eu estava na altura desempregado,
a revista onde escrevia tinha encerrado as portas, e só conseguia alguns
trabalhos como free lancer. Sabendo disso, Salvador tentou convencer-me
a escrever um livro sobre os três homens Palma Lobo que o tinham precedido.
Desde o seu bisavô, o primeiro da estirpe, até ao pai, que morrera no Brasil,
passando pelo avô, um louco formidável». In Domingos Amaral, Já Ninguém Morre de Amor,
Oficina do Livro, 2008, ISBN 978-972-461-802-9.
Cortesia de OficinadoLivro/JDACT
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