sábado, 10 de fevereiro de 2024

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «… os guardas e o carcereiro acompanharam o prisioneiro aos seus aposentos. Não demorou a noite a cair no quarto mal alumiado. Pão e água,.., pão e água... Deitemo-nos. Vê se dormes»

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A Ponte dos Suspiros. Os Sinais do Corpo

«Chegava também, de Paris, Diogo Manuel Lopes, com seu criado francês Aloé. Vinha como embaixador de França, com as credenciais competentes para se apresentar perante a Senhoria. Acompanhava-o Sebastião Figueira, que servira na Índia, combatera em Alcácer onde caíra prisioneiro e, resgatado, emigrara para Paris após a refrega de Alcântara. Era portador de mensagens dos Estados Gerais dos Países Baixos e cartas do príncipe Maurício Nassau e de dom Manuel de Portugal para o doge.

Chegava ainda Cipriano Figueiredo, herói da resistência da Ilha Terceira aos Castelhanos, que el-rei António I fizera conde de São Sebastião... Não percamos tempo, disse Cristóvão. Solicitemos audiência à Senhoria. Não no-la poderá negar. E não negou. Foram recebidos no salão das recepções solenes, ouvidos com atenção e respeito protocolares e obtiveram do doge a promessa de que o Conselho dos Dez resolveria com presteza o caso do prisioneiro. Ao retirarem-se, frei Estêvão, que os acompanhara, deu-se conta de que se cruzavam com o embaixador de Espanha, que vinha subindo a escadaria com semblante pesado.

Vai contrapesar com ameaças pensou. Para que lado penderá a balança da Senhoria?

Dois anos e vinte e um dias. Não dizeis que hoje são quinze de Dezembro do ano de mil e seiscentos? É há quanto tempo me tendes preso. E ainda me chamais a perguntas? Não bastaram as que já tantas vezes fizestes? O juiz Marco Quirini, sem abrir o carrego do rosto, dirigindo um olhar conivente aos outros juízes, disse: Vimos buscar-vos para uma pequena cerimónia na capela. Uma cerimónia? Mas hoje não é dia nem esta é a hora, tão tardia, da costumada missa dos presos. Vinde. Logo vereis.

À porta da câmara o carcereiro sorriu-lhe desdentado, quando ele passou. Teimais então em afirmar que sois...?. ia o juiz a perguntar enquanto seguiam por um longo corredor.

Não teimo. respondeu. Vós é que me obrigais a repetir a verdade, apesar de a saberdes. Estais cansados de a ouvir? Fechai os ouvidos, que a vou reiterar: eu... sou... Está bem, está bem, cortou Quirini. Não é a isso que viemos. A Senhoria, tocada pela vossa disposição de quererdes casar duas órfãs venezianas da esmola do vosso prato..., da minha miséria..., delegou em nós a efectivação do acto. Os noivos esperam-nos na capela com o sacerdote...

Folgo de saber que a Senhoria deu consentimento. O doge recomendou-nos que estivéssemos presentes e fôssemos, além de vós, os padrinhos. O arcebispo de Espálato, sabendo do caso, rogou-lhe que aceitasse como oficiante o seu secretário, o cónego Battista.

Caminharam em silêncio alguns momentos e, antes de chegarem à porta da capela, ao fundo do corredor, o juiz acrescentou com voz grave: Mais ninguém foi autorizado a assistir senão nós e o carcereiro. Os guardas ficam de serviço à porta. Não tomeis como abrandamento do nosso ministério de juízes a nossa presença. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Estais a prevenir-me para a severidade do vosso julgamento? E quando será esse julgamento? Começo a desesperar de que o despacheis.

Marco Quirini não respondeu e, os semblantes compostos para o recolhimento do lugar e da função, entraram na capela. A cerimónia foi simples e rápida. Assinados os termos do matrimónio, os guardas e o carcereiro acompanharam o prisioneiro aos seus aposentos.

Não demorou a noite a cair no quarto mal alumiado. Pão e água,.., pão e água... Deitemo-nos. Vê se dormes». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,