Cambridge, Inglaterra
«Coitado do velho Jacob. Vilão!
Eu vi o que o senhor fez. Eu sei, respondeu o outro, racionalmente. Por isso
vou ter de matá-lo também. Sem mais uma palavra, pegou o maior cutelo do
acossado, que se sentiu congelar. Ergueu a arma bem no alto. O açougueiro
emitiu um grito tão agudo que foi quase inaudível. Timon virou o cutelo, baixou
brutalmente a parte chata na cabeça do homem e apenas o derrubou inconsciente. Com
todo o cuidado, enfiou a arma na mão direita da vítima. Depois ergueu o cachorro,
abriu-lhe a garganta e despejou um pouco de sangue no dono e na lâmina.
Lançou o olhar à rua escura por
um instante. Aguçou os ouvidos em busca da mínima sugestão de outras
testemunhas. Convencido de estar sozinho na missão, escancarou a boca do cão,
empurrou-a no amplo pescoço do açougueiro e fechou-a com força até os dentes
sem vida extraírem sangue. Examinou as outras facas na loja até encontrar uma
lâmina de fino gume. Usou-a para retalhar vários buracos profundos no pescoço
do açougueiro, buracos que pareciam marcas dos dentes de um cachorro. Dois
perfuraram a jugular, e logo jorrou sangue, espalhando uma rubra decoração pelo
piso.
No dia seguinte, as pessoas
diriam que coisa terrível!, pensou Timon consigo mesmo, recuando para admirar o
quadro vivo. O cão do açougueiro atacara-o e ele se vira obrigado a retalhar a
garganta do animal. Então, o coitado do homem sangrara até à morte antes que
alguém pudesse socorrê-lo. Que ironia, num açougue, não era?
Timon vigiou durante cinco
minutos para ter certeza de que o homem morrera. Só então examinou o próprio
manto à procura de manchas, mas a vantagem de usar preto era que o sangue raras
vezes deixava algum traço visível. Sem mais pensar nos mortos, o monge virou-se
para a rua e pôs-se a recitar, de memória, toda a Poética de Aristóteles.
Na tarde seguinte, o tempo esquentou
mais. Cambridge beirava a Primavera, pelo menos no lado de fora. O ar no
interior das paredes do Grande Salão continuava de rigoroso Inverno. Até as
chamas das velas tremiam, tiritando. O lugar era uma caverna. Janelas altas,
embaçadas por décadas de poeira, pareciam planeadas para impedir a entrada da
luz. As paredes exibiam nas sombras indícios de musgo, cujo cheiro pairava no
ar. Os pisos, cinzentos como nuvens de chuva, apenas vedavam o frio.
Vigas de madeira cor de bico de
corvo sustentavam o tecto de pé-direito alto, de cinquenta pés ou mais,
incitando-o rumo ao céu. A gravidade, que pena, fazia o trabalho do diabo,
afundando as vigas e ameaçando derrubar o tecto.
O irmão Timon, sem dúvida com
mais de seis pés de altura no áspero manto de monge asceta, absorvia, e
memorizava, tudo. A posição de cada homem, de cada mesa, a disposição das
velas, a pequena caixa perto da porta, o aroma de conhaque: ele catalogava
todas essas coisas na mente. Mas o que achou mais fascinante foi o ruído da
imensa sala: um constante e baixo zumbido, resultado de vozes sussurradas com a
arranhadura de penas em papel.
O diácono Marbury conduziu Timon
de uma escrivaninha a outra. Muitas, vazias; algumas, ocupadas por estudiosos
absortos, sete, ao todo. Os homens espalhavam-se aqui e ali e entre as cinquenta
mesas de trabalho no salão. Os enormes cubículos de estudo distribuíam-se em
fileiras de cinco, e nenhum deles se sentava em seguida nem defronte a nenhum
outro.
Timon seguiu em silêncio atrás do
diácono Marbury até ao lugar indicado, contando os passos e sentindo os
contornos do piso ao andar. Aqui estamos, disse o anfitrião, afinal. Apresento-lhe
minha filha, Anne. Srta. Anne, este é o seu novo tutor, irmão Timon.
O
monge ergueu os olhos para encontrar os de Anne. Primeiramente, notou que a
moça tinha uma postura perfeita. A estrutura dos ossos era um estudo de ângulos
rectos e permitia uma graça ou fácil bem-estar que relaxavam os músculos. Ela
sentara-se a uma pequena mesa retangular, não escrivaninha. Orelhas pequenas
demais, olhos grandes demais, lábios cheios demais e faces mais avermelhadas,
que ditava a moda. Tomadas em conjunto, essas partes compunham um todo de
estranho encanto. Usava um vestido preto que lhe abafava o pescoço, um visível
gesto petulante numa cultura onde as cores da corte tendiam mais a tons claros
de azul e roxos esmaecidos. Sem perceber, o recém-chegado escovou com a mão os
cabelos para trás, examinando cada feição da jovem como se lesse um difícil
trecho de grego. Batia repetidas vezes e ritmadamente no polegar com os dedos
da mão direita, enquanto a encarava». In Phillip Depoy, A Conspiração do rei
James, Prumo, 2009, ISBN 978-857-927-022-2.
Cortesia de Prumo/JDACT
JDACT, Phillip Depoy, Literatura,