A Ponte dos Suspiros. Os Sinais do Corpo
«A
manhã clareava, avistava-se a grande distância o casario de uma cidade, algumas
ribas mais elevadas do Pó erguiam-se um pouco acima do trasvaze das águas,
vararam o barco na raiz de uma colina, junto a um açude abeberado de choupos e
canaviais.
Há
muito que desconfiava, disse frei Estêvão. Julgo saber quem é. El-rei acordava.
Não prosseguiram a conversa. Saíram em terra e, um pouco acima, abrigados da
nortada na concha de uma lapa, sentaram-se. Marco Túlio fez-lhes sinal que aguardassem.
Viram-no desaparecer na lomba do teso e daí a obra de alguns minutos chegava
ele com um molho de lenha e, pendente da cintura pelas patas, um corpulento
coelho de olho vidrado e pingando sangue dos narizes: O vosso dejejum, Alteza.
O
rei lembrou-se de Telo e o seu olhar entristeceu. Petiscado lume, levaram as
cavacas algum tanto a pegar, mas ao fim, com a paciência e a arte de Túlio, uma
boa fogueira crepitava e o coelho, esfolado e estripado pela destreza do pajem,
assava num espeto de salgueiro ressumando banha.
Se
me não engano, disse frei Estêvão, aquela cidade além... deve ser Ferrara...
acrescentou el-rei. É Ferrara, asseverou Túlio. Conheço-lhe as muralhas e, lá dentro,
as flechas da catedral e a torre do castelo. Apesar de terra do papa, propôs frei
Estêvão, será melhor evitá-la... os espanhóis já devem estar avisados... alongarmo-nos
mais adiante, por Bolonha, caminho de Florença e daí rumar a Livorno no mar da
Ligúria, a tomarmos barco para França...
Para
prevenirem serem reconhecidos por possíveis esculcas, Marco Túlio, useiro
nestas artes, vestiu-se de florentino, el-rei largou o capelo e tomou chapéu e
espada, só frei Estêvão permaneceu com seu hábito de São Domingos. Fizeram
jornada por Bolonha até Florença.
Eis
terra amiga!, disse el-rei à vista da cidade. Seremos aqui bem acolhidos. De
onde vos vem essa esperança, Alteza?, perguntou o frade. É meu primo o duque da
Toscana, Fernando primeiro. Deus vos ouça. Mas, antes de lhe irmos falar,
desejo visitar o túmulo de um ilustre príncipe português. Aqui? De quem falais?
Do cardeal dom Jaime, filho do infante dom Pedro e neto de el-rei dom João
primeiro. Está sepultado na basílica de San Miniato al Monte.
Sem
demora atravessaram o rio por San Nicolò e por Monte alle Croci subiram a San
Miniato. Pararam a olhar do alto o casario, do vermelho dos telhados a
erguerem-se as torres de pedra alvacenta, em volta colinas azuladas, as manchas
verde-negras esguias dos ciprestes, a cinza rebolada dos olivais, o espelho do
rio a cintilar.
Quem
mandou construir a capela do cardeal de Portugal?, perguntava Marco Túlio ao
entrarem na basílica. Não sei grandes pormenores, respondeu el-rei. Dinheiros do
infante dom Pedro, seu pai, depositados em Florença e distribuídos pelos irmãos
herdeiros, parecem ter pago os custos. Caminharam em silêncio até à entrada da
capela e logo na fachada depararam, ao alto, com o brasão do príncipe encimado pelo
chapéu cardinalício...» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros,
1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
Cortesia de Difel/JDACT
JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,