sexta-feira, 1 de março de 2024

A Segunda Vida de Fernando Pessoa. João Céu Silva. «Pedi-lhe, então, que me mostrasse a casa. Em menos de um minuto, o funcionário estava do lado de fora do balcão que antes nos separava e deu início à visita guiada»

jdact

 O Poeta Regressa à Casa Fernando Pessoa

«Era mais que certo que, ao bater à porta da Casa Fernando Pessoa, iria revolucionar a minha vida e a do poeta para toda a eternidade. Afinal, a ressurreição não está à mão de qualquer ser humano que a reclame, nem o avanço da ciência a tornou mais fácil. Não me estou a referir ao voltar à vida através de bruxarias, complexas cirurgias, processos de congelamento ou outros progressos da tecnologia, daqueles que se vão ouvindo de vez em quando nas notícias.

Não, o meu caso é diferente e mais difícil de compreender, mesmo que para o aceitar seja necessário crer em alguma coisa. Porque para mim foi um passo dado sem dificuldade, quase natural, como o de uma criança que começa a caminhar. Estou certo, repito, de que ao bater à porta da Casa Fernando Pessoa irei revolucionar a minha vida e a do poeta para toda a eternidade. Afinal, o que vou dizer aos que estão resguardados pelas paredes grossas daquela construção e que mandam na minha antiga morada não é o que escutam todos os dias da boca dos visitantes que vão à procura das memórias de Fernando, nem o que querem ouvir sobre o Pessoa que guardam oficialmente.

E como não desejo ser aquele sobre quem existam dúvidas, tenho de lhes dizer toda a verdade, logo desde o princípio, convencendo-os de que não sou um turista de passagem que apareceu neste ano de 2010 por acaso, ou talvez um louco que decidiu fazer uma habilidade especial. Antes, devo mostrar-lhes que a eternidade das palavras que têm por missão preservar não está, como pensam, numa arca meio cheia, mas na parte meio vazia da qual só eu tenho a chave.

Decerto que a novidade que lhes vou dar não será a que esperam, mesmo que, passada a previsível grande tempestade, devam ficar satisfeitos com a revelação. Não me custa pensar que assim será, porque os últimos dias têm mostrado como é uma experiência complicada esta de certificar que o poeta não morreu para sempre.

Que não é como o Luís de Camões, morto e enterrado sabe-se lá aonde e cuja obra ficou esquecida por muito mais tempo do que a de Pessoa. De uma coisa estou certo antes de bater à porta da Casa e de lhes dizer ao que vou: não contem comigo para contar uma mentira. Tudo o que vai acontecer nos dias que se seguirão foi montado aos poucos, como se eu observasse uma casa a crescer desde as fundações até ao tecto. Foi assim que ficou definida a minha missão, como se fosse uma segunda vida que Vicente Guedes dá a Fernando Pessoa, depois de ter sido um heterónimo quase esquecido e substituído pelo Bernardo Soares no Livro do Desassossego.

O que eu disse ao porteiro não o surpreendeu. Olhou de alto a baixo e reconheceu-me. O que seria de esperar, porque eu era exactamente como me têm descrito; bigode, nariz circunspecto, fato negro e chapéu, tudo a combinar com a imagem das fotografias.

Bom dia, senhor Fernando Pessoa. Como tem passado? Diria mesmo que foi mais educado do que eu poderia esperar.

Poderia ter respondido torto e achar que vinha reclamar o que era meu, deixando-o sem emprego. Ou pensar que, portando-se bem, o manteria, pois nenhum poeta famoso dispensa um funcionário para todo o serviço, como ele parecia poder vir a ser. Portanto, fiquei satisfeito com a forma como decorreu a primeira situação, mesmo que tivesse antevisto vários outros desfechos.

Pedi-lhe, então, que me mostrasse a casa. Em menos de um minuto, o funcionário estava do lado de fora do balcão que antes nos separava e deu início à visita guiada». In João Céu e Silva, A Segunda Vida de Fernando Pessoa, Autores e Guerra e Paz, Editores, 2020, ISBN 978-989-702-565-5-

Cortesia de AGePazEditores/JDACT

JDACT, Fernando Pessoa, João Céu e Silva, Literatura, Conhecimento,