O Rei de Marfim
«(…) Terminado
o casario, pelo adiantado da hora alguma gente vai-se deixando ficar para trás
arrimada às paredes, os braços cruzados cingindo o próprio corpo transido da
friagem que sopra das dunas e se escoa a zinir pelas ruelas estreitas. um
pequeno grupo de mulheres chorosas ainda acena um pobre adeus, mas, com o
decorrer da caminhada por trilhos rudes que sobem de leve a ladear a ribeira do
Arade, aos gritos e carpidos sucede o silêncio de almas cansadas. Ouve-se
apenas o som continuado do patear das cavalgaduras e do andar dos peões neste
fúnebre seguir à luz das tochas. É como se eu aqui vá sozinho contigo pela
última vez. Gosto das sendas solitárias abeiradas de pinheiros mansos e
palmeiras africanas, das breves encostas de amendoeiras e alfarrobeiras, das
figueiras que vergam até ao solo os ramos carregados de frutos roxos que pingam
mel. Passam canaviais inclinados pelo suão. Amarelejam agora aqui ao lado, no
lampejo dos brandões, como olhos de fogo a espiarem-nos no negrume, os pomos de
um laranjal. Três léguas bem puxadas de Alvor a Silves, todo o teu destino
infeliz no meu pensamento. Morreres abandonado, um tal rei! Ires aí às costas
de mula, metido em quatro tábuas disfarçadas à pressa de estofos reais, aos
solavancos por carreiros pedragulhentos no segredo da noite!... Ninguém se
atreveu a clamar, embora a todos espantasse, que é uma vergonha o duque Manuel
não estar presente ao teu saimento. Ninguém ousou gritar que foi uma infâmia a
rainha Leonor não ter assistido ao esposo moribundo. Cada um de nós, no foro
íntimo, busca encontrar explicação para zanga mais teimosa que a morte..., e os
nobres senhores onde estão eles? Os poucos que te acompanham, teus próximos
servidores, já nem avanço dizer teus fiéis servidores, sabe-se lá quem é que...,
quando o caminho alarga achegam as montadas e cochicham apreensões ou..., assim
que as veredas apertam, seguem em fila, calados, focinhudos, escoltados pelas caras
vermelhas e suadas dos servos que se afadigam de facho em punho por igualar o
andamento dos animais. Os outros, lá longe em seus castelos e palácios,
aprestam o ouvido se nos ruídos do vento distinguem galopear de cavalo que, por
paradas nas estradas do reino, tragam recado de esculcas de que tu já morreste.
De manhã, sinos a dobrar a finado..., sinos algures a repicar regozijos..., em
cada coração o amor ou o ódio..., no teu, Deus me perdoe e perdoa-me tu também,
ambas as coisas. De onde te veio esse raiarem-se-te os olhos de sangue? Essa comissura
descaída e raivosa dos lábios? Como a de tua irmã Joana. Que parecença! Que gana
e força de alma num e noutro!... E no entanto que sorriso bondoso e aberto tantas
vezes te surpreendi..., até para mim!... Caminhamos agora por um trecho de
velha calçada romana com suas grandes lajes sulcadas pelo rodado de carroças de
outros séculos. É mais vivo o patear dos cascos ferrados da cavalgada. Para lá
do clarão dos archotes apenas se enxergam trevas, mas eu, que conheço esta
paisagem, adivinho para além da planície a colina em que se ergue o castelo de
Silves, de pedra rosada, o corpo esbranquiçado da sé catedral, as casas caiadas
de fresco e, lá bem ao fundo, os contrafortes da serrania. Nunca me tinha acontecido
olhar perfurando a escuridão com os olhos da memória. Vem a calhar, que todo o
espírito se me vaza atrás a buscar as coisas passadas. Ainda há poucos dias
descias tu, com toda a tua comitiva, a serra do Algarve, a pedir saúde às águas
das caldas. sol a pino, vibravam alfarrobeiras e aloendros a zunideira das cigarras.
Paraste para jantar junto de um ribeiro, à sombra de umas sovereiras.
Chegai-me o xadrez para eu
espantar o sono, pediste depois de comer, estes médicos! prescrevem-me que beba
algum vinho... É o mais aconselhável no caso presente, meu senhor, dizia o
físico-mor. Dá-me sonolência e vindes-me com essa de que me faz mal dormir a
sesta… Chegou o moço da guarda-roupa muito aflito: Senhor, a bolsa com os trebelhos...
e então? Está aqui..., mas, põe aí. Senhor, o tabuleiro,.., o tabuleiro ... Já
lá vai adiante com a cama..., por esquecimento...» In Fernando Campos, A Esmeralda
Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.
Cortesia de Difel/JDACT
D. João II, JDACT, Literatura, Saber, Fernando Campos,