A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
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Infelizmente, numerosas secções e mesmo simples páginas dos manuscritos de
Berequias tinham sido reunidos fora da ordem por alguém manifestamente incapaz
de ler o judeu-português. Era de enlouquecer. Levei dois meses para voltar a
pôr tudo por ordem. Mas uma vez isso feito, o livro de Berequias Zarco lia-se
perfeitamente. Os três manuscritos históricos no seu conjunto formam uma obra
única, narrando a odisseia da família de Berequias durante os trágicos acontecimentos
de Abril de 1506. Contam, em particular, a perseguição que Berequias moveu ao
assassino do seu amado tio Abraão, um famoso cabalista provavelmente
responsável por algumas das obras da Escola de Lisboa, até hoje consideradas
anónimas, incluindo, por razões que a narrativa torna claras, Batendo às
Portas e o Livro do Fruto Divino. São vários os breves relatos da
matança que chegaram até nós, incluindo um de Salomão Ben Verga referido por
Berequias, e não pode haver dúvidas quanto à veracidade da crónica de
Berequias. Todos os principais acontecimentos aí relatados foram confirmados
por escritos contemporâneos. Muitas das pessoas mencionadas, como Didi Molcho,
João de Mascarenhas e Isaac Ben Farraj são nossos conhecidos através das suas
obras assim como através de documentos da Igreja e da Coroa portuguesa. Alguns
leitores menos familiarizados com a literatura sefardita e novo-cristã do
século XVI poderão estranhar a minha reprodução da história de Berequias sob a
forma de um mistério e o uso da linguagem coloquial. Berequias Zarco é, porém,
como tantos dos seus contemporâneos, um autor moderno tanto na visão como no
estilo. O segundo manuscrito, em especial, manifesta uma técnica directa que se
assemelha à da novela picaresca espanhola, que começava a aparecer
aproximadamente na mesma época dos manuscritos de Berequias. Curiosamente,
muitos dos autores picarescos espanhóis eram também judeus convertidos.
Berequias Zarco estava inegavelmente familiarizado com esses contemporâneos
castelhanos.
Ao
contrário das novelas picarescas, porém, o tom de Berequias quase nunca é
irónico e nunca burlesco. Além disso, o seu personagem principal, ele próprio,
não é nem um vilão nem um herói. É simplesmente aquilo que Berequias deve ter
sido: um jovem inteligente e confuso, que fazia iluminuras, que vendia fruta e
era cabalista; um jovem destroçado pela morte de seu tio. A linguagem franca de
Berequias recorre a palavrões, afirmações claramente blasfemas e mesmo calão,
que tentei manter na íntegra. Parece-me evidente que se a intenção de Berequias
tivesse sido a de escrever mais um documento místico ou mesmo um texto
histórico mais circunspecto, tê-lo-ia feito. Tinha talento e conhecimentos para
tanto. A verdade é que não o fez. Escreveu um mistério em três partes, a última
das quais poderia ser considerada pelos críticos contemporâneos como um
epílogo. Tendo em atenção o leitor moderno, dividi essas três partes em vinte
capítulos. Os capítulos I a VIII correspondem ao primeiro dos manuscritos de
Berequias; do IX ao XX, ao segundo manuscrito; e o XXI ao terceiro. Apesar de O
último Cabalista de Lisboa ser mais que uma tradução, mantive-me
rigorosamente fiel ao conteúdo do escrito de Berequias, a não ser em dois
casos: quando ele inclui extensas recitações de orações e de cânticos; e quando
faz digressões sobre pontos espirituais associados aos arcanos essenciais
relacionados com a Cabala. Apesar de se revestirem de interesse académico,
seriam provavelmente dificultosos e aborrecidos para o leitor, e excluí-os por
isso da minha transcrição. Do mesmo modo, várias secções foram reordenadas
segundo a ordem cronológica, quando antes estavam ligadas segundo a tese
espiritual que Berequias procurava demonstrar. Creio que também este facto não
altera de modo substancial a obra de Berequias, e a estrutura que adoptei fará
certamente mais sentido para o leitor moderno.
De
um modo geral, procurei estabelecer um equilíbrio entre a linguagem
contemporânea e o uso ocasional de uma ou outra palavra ou frase mais antiga.
No seu conjunto, a obra permanece, assim o espero, fiel ao espírito do autor. Berequias
não é sempre coerente na grafia do português, talvez devido à dificuldade de
transcrever a língua da sua terra em caracteres hebraicos. Por isso mesmo, as
transcrições do português são feitas de acordo com as convenções actuais.
Sempre que se transcrevem palavras hebraicas, recorre-se aos caracteres
latinos, de modo a poderem ser pronunciados pelos leitores americanos e
europeus. Os manuscritos de Berequias levantam algumas questões importantes
sobre a história dos livros hebraicos na Ibéria. Será a Tora ilustrada que ele
descobre na geniza de seu tio a
chamada Bíblia de Kennicott, que hoje pertence à Biblioteca Bodleian da
Universidade de Oxford? A referência às letras em forma de animal e a Isaac
Bracarense (indubitavelmente Isaac de Braga, por quem o manuscrito foi
ilustrado) parece indicar nessa direcção. Nada se sabe da história da Bíblia
desde a data do seu acabamento em 1476 até à sua aquisição em 1771 por Oxford,
a conselho do bibliotecário, Kennicott. Talvez tenha de facto sido salva por
Abraão e Berequias Zarco. Quanto à versão hebraica e árabe da Fonte da Vida
detida por frei Carlos: teria sido realmente passada para Salónica? Que lhe
terá, então, acontecido? Nunca foi encontrado nenhum original árabe, apenas
traduções latinas». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal
Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.
Cortesia de QuetzalE/JDACT
JDACT, Richard Zimler, Judeus, História Local, Conhecimentos,