quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Agostinho Neto: «A sua poesia traz o reconhecimento de que nunca se está só, de que não se pode ignorar a presença do outro, mesmo que o outro reduza as suas possibilidades de Ser»

(1922-1979)
Cortesia de blogdangola

Fogo e ritmo
Sons de grilhetas nas estradas
cantos de pássaros
sob a verdura úmida das florestas
frescura na sinfonia adocicada
dos coqueirais
fogo
fogo no capim
fogo sobre o quente das chapas do Cayatte.
Caminhos largos
cheios de gente cheios de gente
em êxodo de toda a parte
caminhos largos para os horizontes fechados
mas caminhos
caminhos abertos por cima
da impossibilidade dos braços.
Fogueiras
dança
tamtam
ritmo

Ritmo na luz
ritmo na cor
ritmo no movimento
ritmo nas gretas sangrentas dos pés descalços
ritmo nas unhas descarnadas
Mas ritmo
ritmo.

Ó vozes dolorosas de África!
Agostinho Neto, in «Sagrada Esperança»

Noite
Eu vivo
nos bairros escuros do mundo
sem luz nem vida.

Vou pelas ruas
às apalpadelas
encostado aos meus informes sonhos
tropeçando na escravidão
ao meu desejo de ser.

São bairros de escravos
mundos de miséria
bairros escuros.

Onde as vontades se diluíram
e os homens se confundiram
com as coisas.

Ando aos trambolhões
pelas ruas sem luz
desconhecidas
pejadas de mística e terror
de braço dado com fantasmas.

Também a noite é escura.
Agostinho Neto, in «Sagrada Esperança»


Cortesia de sitedeliteratura/Fundação Dr. António Agostinho Neto/JDACT