domingo, 24 de outubro de 2010

A Epistolografia. Mariana Alcoforado: «A autenticidade da confissão, o surpreendente poder de expressão do caos interior (...) a tensão dramática e eloquente que a missivista imprime às suas confissões, são algumas das notas novas e ainda vivas das Cinco Cartas de Amor»

Cortesia de recantodasletras

Durante o século XVII, a epistolografia ganhou fisionomia literária autónoma. Não se trata a epístola em verso, tão remota quanto Horácio, seu criador, mas da carta viva, em prosa, com função específica de informar acerca da vida pessoal ou alheia, e fazer comentários, a modo de Crónica ou reportagem da vida diária. Embora desde o Renascimento já se tenham cartas desse tipo (por exemplo, as cinco de Camões e as nove de Jerónimo Osório, intituladas Cartas Portuguesas), é só no decurso do Barroco que elas aparecem numa profusão e numa categoria poucas vezes atingidas, antes ou depois.

Marie de Rabutin-Chantal, marquesa de Sévigné (1626-1696), lembrada pela sua escrita. A maioria das suas cartas foram dirigidas à filha. 
Oferecem uma visão para os costumes sociais e os costumes da vida do século XVII francês.
Cortesia de flickr
O grande modelo no tempo é Madame de Sévigné, com seus oito volumes de Lettres, escritas a partir de 1671 e apenas publicadas no século XVIII. No caso, a carta faz as vezes do jornal, então ainda raro mesmo nas mais adiantadas metrópoles europeias. É fácil compreender que aos poucos a carta tornou-se exercício literário, chegando até a prescindir de destinatário certo. O epistológrafo imaginava um qualquer ou dirigia-se a uma audiência fictícia.

Cortesia de amazon 
A moda foi seguida em Portugal por uma série de escritores de nomeada, e os quais o Pa. António Vieira, D. Francisco Manuel de Melo, Frei António das Chagas, Cavaleiro de Oliveira e, de modo muito especial, Sóror Mariana Alcoforado.
(1640-1723)
Beja
Cortesia de auladeliteraturaportuguesa

Professa no Convento de N. Sra da Conceição na sua cidade natal. Em 1663, conhece Chamilly, oficial Francês servindo em Portugal durante as guerras da Restauracção. Enamoram-se. Um dia, porém, o militar regressa à França impelido por chamado superior. Está-se em 1667. Teriam trocado cartas, das quais só ficaram as escritas pela religiosa a quem é atribuída a autoria das Lettres Portugaises. Na realidade, a obra é escrita por Lavergne de Guilleraggues. Porém, este escritor francês da corte de Luís XIV publica em Paris, em 1669, a versão francesa de um texto em português escrito por uma freira, que é o conjunto de cinco cartas endereçadas ao marquês de Chamilly. As cartas estão assinadas por Marianne e, de facto, nessa data o marquês serve em Portugal, onde chega em 1665, integrado nas tropas francesas que ajudam Portugal na Guerra da Restauração. A controvérsia sobre a real autoria destas cartas tem-se prolongado até aos nossos dias. A existência histórica de Sóror Mariana Alcoforado, bem como a do seu apaixonado, não é posta em causa. As dúvidas surgem quanto à autenticidade das cartas. Para além do enigma literário que as cartas vêm criar, apócrifas ou não, as Lettres Portugaises lançam a moda dos romances organizados sob a forma de epístolas.


No mesmo ano são publicadas em Colónia com o título Lettres d'amour d'une religieuse portugaise. Nesta última edição, uma nota informa que as cartas foram dirigidas ao cavaleiro de Chamilly e tinham sido traduzidas para francês por Guilleragues. Boissonade faz saber em 1810 que encontrou um manuscrito das cartas que indica que a autora das mesmas se chamava «Mariana Alcaforada, religiosa em Beja». Os investigadores actuais duvidam, no entanto, da atribuição desta autoria. As cartas tiveram várias traduções para português, sendo a última de Eugénio de Andrade (Lisboa, Assírio Alvim, 1993).
Dali para a frente, foram lidas e traduzidas em várias línguas, sempre com progressivo interesse. Em 1810, Filinto Elísio pô-las em vernáculo.


Cortesia de wook
As cinco cartas amorosas possuem real importância e interesse e o seu tonus identifica-se perfeitamente com a índole literária portuguesa. Perpassa-as um violento sopro de paixão incontrolada, superior a todas as inibições e convenções e a todo impulso da vontade e da consciência moral. Paixão que não amor, pois o sentimento expresso contém na raiz um avassalador ímpeto carnal, explicável inclusive pela atmosfera barroca em que o caso amoroso se desenrola. As cartas expressam a sincera, franca e escaldante confissão duma mulher que se desnuda interiormente para o amante cínico, ingrato e ausente, com fúria de fêmea abandonada, sem qualquer rebuço ou pudor
Cortesia de minhamamiwordpress
«A autenticidade da confissão, o surpreendente poder de expressão do caos interior feito de apelos desencontrados, a ausência de qualquer trava moral, o ar de paganismo anterior aos preconceitos e convenções a exprimir o impulso primário dos sentidos, a tensão dramática e eloquente que a missivista imprime às suas confissões, são algumas das notas novas e ainda vivas das Cinco Cartas de Amor». Escritas por uma mulher, as Cartas ganham maior relevo ainda como documento «humano» e literário precisamente porque não visavam à publicação nem a ser encaradas como peça literária. 
A forma de comunicação, as Cartas são obra sem igual, e em nosso idioma é preciso aguardar o aparecimento de Florbela Espanca, no século XX, para que uma voz de angústia passional se erga tão alto e tão dolorosamente arranque da carne a confissão amorosa logo transformada em sonetos de primeira grandeza.
robertossetimadimensao
As Cartas de Amor da Sóror Mariana Alcoforado constituem um dos pontos altos do Barroco português.
 
Cortesia de wikipedia/JDACT