domingo, 2 de janeiro de 2011

Camões e a Infanta D. Maria: Parte VI. «Mas, se a Infanta se conservava inexoravelmente surda às súplicas do enamorado poeta, este é que também se declarou firmemente resolvido antes a tudo sofrer, do que a deixar de vê-la e amá-la. Ameaçado com o exílio, Camões respondia altivamente»

(1521-1577)
Cortesia de publicacoesforiente

Com a devida vénia a José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910.

Às vezes, a infanta, supondo que o poeta já teria desistido da sua louca pretenção, e não querendo, por certo, que se reparasse na maneira como o tratava, olhava-o com vista mais suave. Era o bastante para ele ficar doido de contente!

Se, algum'hora, essa vista mais suave
Acaso a mi volveis, em um momento
Me sinto com um tal contentamento,
Que não temo que dano algum me aggrave.

Mas quando, com desdém esquivo e grave,
O bello rosto me mostrais isento,
Uma dor provo tal, um tal tormento.
Que muito vem a ser que não me acabe.

Assi está minha vida ou minha morte
No volver desses olhos, pois podeis
Dar c'uma volta delles morte ou vida.

Ditoso eu, se o ceu quer, ou minha sorte,
Que ou vida, para dar-vo-la, me deis,
Ou morte, para haver morte querida!
(Soneto 156).

Por fim a situação tornou-se irredutível:

Em não ver-me ella só sempre está firme,
Mas eu firme estarei no que emprendi!

exclama o resoluto poeta
Tudo …. faz mudança,
Quanto o claro sol vê, quanto allumia ;
Não se acha segurança
Em tudo quanto alegra o bello dia ;
Mudam-se as condições, muda-se a idade,
A bonança, os estados e a vontade.

Somente a minha imiga
A dura condição nunca mudou,
Para que o mundo diga
Que nella lei tão certa se quebrou.
Em não ver-me ella só sempre está firme,
Ou por fugir de Amor, ou por fugir-me.

Mas já soffrivel fôra
Que em matar-me ella só mostre firmeza,
Se não achára agora
Também em mi mudada a natureza,
Pois sempre o coração tenho turbado,
Sempre de escuras nuvens rodeado.

Sempre exprimento os frios
Que em contino receio Amor me manda ;
Sempre os dous caudais rios.
Que em meus olhos abrio quem nos seus anda,
Correm, sem chegar nunca o verão brando,
Que tamanha aspereza vá mudando.

O sol sereno e puro,
Que no formoso rosto resplandece,
Envolto em manto escuro
Do triste esquecimento, não parece.
Deixando em triste noite a triste vida.
Que nunca de luz nova é soccorrida.

Porém seja o que for :
Mude-se por meu dano a natureza ;
Perca a inconstância Amor
A fortuna inconstante ache firmeza ;
Tudo mudavel seja contra mi :
Mas eu firme estarei no que emprendi!
(Ode 12).

A infanta resolveu então fazer saber ao tresloucado mancebo que não queria tornar mais a vê-lo (1).

(1) É natural que desta delicada missão fosse encarregado D. Francisco de Noronha. Camões, como se infere do soneto 68, ter-lhe-ia respondido que cumpriria as ordens da Infanta e que se limitaria a vê-la, a contemplá-la dentro da sua alma. Como o apaixonado poeta, se falava com sinceridade, se achava iludido! E como não devia ficar desgostoso, se não irritado, o ilustre fidalgo, com o procedimento do seu protegido! É este mesmo que o declara :

A piedade humana me faltava,
A gente amiga já contraria via.
No perigo primeiro.
(Canção 11, 181-183).

Eis como ele encara a sua nova situação:

Dai-me uma lei, senhora, de querer-vos,
Porque a guarde, sob pena de enojar-vos;
Pois a fé que me obriga a tanto amar-vos
Fará que fique em lei de obedecer-vos.

Tudo me defendei, senão só ver-vos
E dentro na minha alma contemplar-vos,
Que, se assi não chegar a contentar-vos.
Ao menos nunca chegue a aborrecer-vos.

E se essa condição, cruel e esquiva,
Que me deis lei de vida não consente,
Dai-ma, senhora, já, seja de morte.

Se nem essa me dais, é bem que viva,
Sem saber como vivo, tristemente ;
Mas contente estarei com minha sorte.
(Soneto 68)


Senhora minha, se, de pura inveja,
Amor me tolhe a vista delicada,
A côr, de rosa e neve semeada,
E dos olhos a luz, que o sol deseja.

Não me póde tolher que vos não veja
Nesta alma, que elle mesmo vos tem dada,
Onde vos terei sempre debuxada,
Por mais cruel imigo que me seja.

Nella vos vejo, e vejo que não nace
Em bello e fresco prado deleitoso
Senão flor que dá cheiro a toda a serra.

Os lirios tendes numa e noutra face ;
Ditoso quem vos vir, mas mais ditoso
Quem os tiver, se ha tanto bem na terra.
(Soneto 303)

Cortesia de aespeciaria
Mas era muito pouco ver, contemplar, a bem-amada só com os olhos da alma. Quem tão apaixonado estava, não podia limitar-se a isso. Era-lhe melhor a morte.

Mote
Vida da minha alma,
Não vos posso ver!
Isto não é vida
Para se soffrer!

Voltas
Quando vos eu via,
— Esse bem lograva —,
A vida estimava.
Pois então vivia,
Porque vos servia,
Só para vos ver.
Já que vos não vejo,
Para que é viver?

Vivo sem razão,
Porque em minha dor
Não a pôs Amor,
Que inimigos são.

Mui grande traição
Me obriga a fazer :
Que viva, senhora,
Sem vos poder ver!

Não me atrevo já,
Minha tão querida,
A chamar-vos vida,
Porque a tenho má.
Ninguém cuidará
Que isto póde ser :
Sendo-me vós vida,
Não poder viver!

Mote
Da alma e de quanto tiver
Quero que me despojeis,
Com tanto que me deixeis
Os olhos, para vos ver.

Volta
Cousa este corpo não tem,
Que já não tenhais rendida.
Despois de tirar-lhe a vida,
Tirai-lhe a morte tambem.

Se mais tenho que perder,
Mais quero que me leveis,
Com tanto que me deixeis
Os olhos, para vos ver.

Mote
Que veré que me contente ?

Glosa
Desque una vez yo miré,
Señora, vuestra beldad,
Jamas por mi voluntad
Los ojos de vos quité.

Pues sin vos placer no siente
Mi vida, ni lo desea,
Si no quereis que yo os vea,
Que veré que me contente?

E não se tratava, de mais a mais, de uma ordem injusta, de uma imposição tirânica?

De uma fonte se sabia,
Da qual certo se provava
Que quem sobre ella jurava,
Se falsidade dizia,
Dos olhos logo cegava.

Vós, que minha liberdade,
Senhora, tyrannizais,
Injustamente mandais,
Quando vos fallo verdade,
Que vos não possa ver mais!
(Carta a uma dama)

Não é, pois, de admirar que o poeta, apesar do que se tinha passado, procurasse tornar a ver a Infanta:

Mote
Vida da minha alma.

Volta
Dous tormentos vejo,
Grandes por extremo :
Se vos vejo, temo,
E se não, desejo.

Quando me despejo
E venho a escolher,
Temendo o desejo,
Desejo temer.

Cortesia de auribertoeternochocalheiro
Foi, por isso, necessario avisá-lo novamente, dando-lhe um formal desengano, expondo-lhe os perigos que a sua teimosa leviandade lhe poderia acarretar e fazendo-lhe sentir o profundo desgosto da infanta. Ele, porém, a nada se movia.

Se com desprezos, nympha, te parece
Que podes desviar do seu cuidado
Um coração constante, que se offrece
A ter por gloria o ser atormentado :

Deixa a tua porfia e reconhece
Que mal sabes de amor desenganado,
Pois não sentes nem ves que em teu mal cresce,
Crescendo em mi, de ti mais desamado.

O esquivo desamor, com que me tratas,
Converte em piedade, se não queres
Que cresça o meu querer e o teu desgosto.

Vencer-me com cruezas nunca esperes :
Bem me podes matar e bem me matas,
Mas sempre ha de viver meu presupposto!
(Soneto 124)

Se tanta pena tenho merecida,
Em pago de soffrer tantas durezas,
Provai, senhora, em mi vossas cruezas,
Que aqui tendes uma alma offerecida.

Nella experimentai, se sois servida,
Desprezos, desfavores e asperezas,
Que móres soffrimentos e firmezas
Sustentarei na guerra desta vida.

Mas contra vossos olhos quaes serão?
É preciso que tudo se lhes renda ;
Mas porei por escudo o coração.

Porque, em tão dura e áspera contenda,
É bem que, pois não acho defensão,
Com metter-me nas lanças me defenda.
(Soneto 33)

Uma vez ou outra, a desesperança apoderava-se do ânimo do renitente poeta:

Apollo e as nove musas, descantando,
Com a dourada lyra me influiam
Na suave harmonia que faziam,
Quando tomei a penna, começando :

Ditoso seja o dia e hora, quando
Tão delicados olhos me feriam ;
Ditosos os sentidos, que sentiam
Estar-se em seu desejo traspassando.

Assi cantava, quando Amor virou
A roda á esperança, que corria
Tão ligeira, que quasi era invisibil.

Converteu-se-me em noite o claro dia,
E, se alguma esperança me ficou,
Será de maior mal, se for possibil.
(Soneto 51)

Mas é bem certo que não há pior cego do que quem não quer ver:

Bem sei, Amor, que é certo o que receio,
Mas tu, porque com isso mais te apuras,
De manhoso mo negas e mo juras
Nesse teu arco de ouro, e eu te creio.

A mão tenho mettida no meu seio,
E não vejo os meus danos ás escuras ;
Porém porfias tanto e me asseguras,
Que me digo que minto e que me enleio.

Nem somente consinto neste engano,
Mas inda to agradeço, e a mi me nego
Tudo o que vejo e sinto de meu dano.

Oh poderoso mal, a que me entrego!
Que, no meio do justo desengano,
Me possa inda cegar um moço cego!
(Soneto 79)

Cortesia de  segundavida
E, cego pelo moço cego, praticava desatinos, de que depois pedia perdão, mas que, por certo, não tardariam a comprometer a Infanta, se não se lhes pusesse cobro.

Senhora já desta alma, perdoai
De um vencido de Amor os desatinos,
E sejam vossos olhos tão beninos
Com este puro amor, que da alma sai.

A minha pura fé somente olhai,
E vede meus extremos, se são finos,
E, se de alguma pena forem dinos,
Em mim, senhora minha, vos vingai.

Não seja a dor que abrasa o triste peito
Causa por onde pene o coração,
Que tanto em firme amor vos é sujeito.

Guardai-vos do que alguns, dama, dirão :
Que, sendo raro em tudo vosso objeito,
Possa morar em vós ingratidão.
(Soneto 278)

Vinham então as promessas de que ninguém o veria ver a Infanta:

Mote
Pois dano me faz olhar-vos,
Não quero, por não perder-vos,
Que ninguém me veja ver-vos.

Voltas
De ver-vos a não vos ver,
Ha dous extremos mortais.
E são elles em si tais,
Que um por um me faz morrer.
Mas antes quero escolher
Que possa viver sem ver-vos,
Minha alma, por não perder-vos.
Deste tamanho perigo
Que remedio posso ter,
Se vivo só com vos ver,
Se vos não vejo, perigo ?
Mas quero acabar comigo
Que ninguém me veja ver-vos,
Senhora, por não perder-vos.

Vinham então as apaixonadas súplicas para que a infanta se não esquecesse do seu triste coração, para que lhe poupasse a vida:
Mote
Pois é mais vosso que meu,
Senhora, meu coração,
Eu vosso captivo são,
Meus olhos, lembre-vos eu.

Volta
Lembre-vos minha tristeza,
Que jámais nunca me deixa ;
Lembre-vos com quanta queixa
Se queixa minha firmeza.

Lembre-vos que não é meu
Este triste coração ;
E pois ha tanta razão.
Meus olhos, lembre-vos eu.

Mote
Senhora, pois minha vida
Tendes em vosso poder,
Por serdes della servida,
Não queirais que destruída
Possa ser.

Volta
Isto, não por me pesar
De morrer, se vós quiserdes ;
Que melhor me é acabar
Mil vezes, que supportar
Os males que me fizerdes :

Mas só por serdes servida
De mi, emquanto viver,
— Vos peço que minha vida
Não queirais que destruida
Possa ser. 

Cortesia de fabiopestanaramos
Mas, se a Infanta se conservava inexoravelmente surda às súplicas do enamorado poeta, este é que também se declarou firmemente resolvido antes a tudo sofrer, do que a deixar de vê-la e amá-la:

Quando se vir com agua o fogo arder,
Juntar-se ao claro dia a noite escura,
E a terra collocada lá na altura,
Em que se vêem os ceos, prevalecer ;

Quando Amor á razão obedecer,
E em todos for igual uma ventura :
Deixarei eu de ver tal formosura
E de a amar deixarei, depois de a ver.

Porém, não sendo vista esta mudança
No mundo, porque, emfim, não póde ver-se,
Ninguem mudar-me queira de querer-vos.

Que basta estar em vós minha esperança
E o ganhar-se a minha alma ou o perder-se,
Para dos olhos meus nunca perder-vos.
(Soneto 145)

Se pena, por amar-vos, se merece,
Quem della estará livre ? quem isento ?
E que alma, que razão, que intendimento,
No instante em que vos vê, não obedece ?

Qual mór gloria na vida já se offrece,
Que a de occupar-se em vós o pensamento ?
Não só todo rigor, todo tormento,
Com ver-vos, não magõa, mas se esquece,

Porém, se heis de matar a quem, amando,
Ser vosso de amor tanto só pretende,
O mundo matareis, que é todo vosso.

Em mi podeis, senhora, ir começando,
Pois bem claro se mostra e bem se intende
Amar-vos quanto devo e quanto posso.
(Soneto 82)

Ameaçado com o exílio, Camões respondia altivamente.

Continua, numa próxima oportunidade!

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/JDACT