terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Camões e a Infanta D. Maria: Parte VIII. «Deu, senhora, por sentença amor que fosseis doente, para fazerdes à gente doce e formosa a doença»

(1521-1577)
Cortesia de publicacoes foriente

Com a devida vénia a José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910.

Como tardava para o enamorado poeta o dia em que podesse tornar a ver a sua saudade!

Mote

Saudade minha.
Quando vos veria ?

Voltas

Este tempo vão,
Esta vida escassa,
Para todos passa,
Só para niim não.
Os dias se vão,
Sem ver este dia,
Quando vos veria.

Vede esta mudança
Se está bem perdida:
Em tão curta vida,
Tão longa esperança !
Se este bem se alcança,
Tudo soffreria,
Quando vos veria.

Saudosa dor,
Eu bem vos intendo;
Mas não me defendo,
Porque offendo Amor.
Se fosseis maior,
Em maior valia
Vos estimaria.

Minha saudade.
Caro penhor meu,
A quem direu eu
Tamanha verdade ?
Na minha vontade,
De noite e de dia,
Sempre vos teria.

Estaria a infanta fora de Lisboa, durante alguma temporada, no período que decorre da Primavera de 1546 até à de 1547?
Pela crónica de Francisco de Andrade sabemos que a corte se achava em Almeirim no começo de Junho de 1546. E do Corpo diplomático português, tomo VI, se deduz que residiu todo o ano nesta vila ou em Santarém. É, portanto, natural que a infanta também para ali fosse passar, pelo menos, a estação calmosa.

Cortesia de wikipedia
E não seria esta a primeira vez que ela, depois de ter casa à parte, acompanhasse o irmão e a tia para fora de Lisboa. Em Setembro de 1543, por exemplo, encontravam-se todos em Sintra.
Em princípio de Fevereiro de 1547, é certo, assistiu a infanta em Almeirim ao faustuoso casamento de D. João de Lencastre, primeiro duque de Aveiro, com D. Juliana de Lara, irmã do quarto marquês de Vila Real, D. Miguel de Meneses.
Não me parece, porém, que fosse esta a ausência que motivou as poesias de Camões.
Creio, em primeiro lugar, que ela não foi longa. Demais, nessa ocasião já os amores de Camões deviam ter saído da fase idílica, em que as referidas poesias foram escritas. Acresce ainda que talvez o poeta se achasse também presente ao acto. A noiva, com efeito, pertencia, muito de perto, à família do seu amigo e protector, D. Francisco de Noronha, e era natural que o pequeno D. António fosse também a Almeirim, acompanhado do seu preceptor. Era uma festa de família, transformada em festa da corte, e D. Francisco de Noronha quereria, por certo, que o seu primogénito a ela assistisse. E compreende-se bem que o poeta procuraria remover quaisquer obstáculos, se os houvesse, para ir com o seu discípulo e olhar por ele.
Suponho, por isso, que as poesias a que acabo de me referir foram escritas durante a estação calmosa do ano de 1546.

Cortesia de wikipedia
Outro grupo de poesias, anteriores ao exílio, é o que foi motivado por uma doença da infanta.

Mote

Deu, senhora, por sentença
Amor que fosseis doente,
Para fazerdes à gente
Doce e formosa a doença.

Voltas

Não sabendo Amor curar,
Foi a doença fazer,
Formosa para se ver.
Doce para se passar.

Então, vendo a differença
Que ha de vós a toda a gente,
Mandou que fosseis doente,
Para gloria da doença.

E digo-vos de verdade
Que a saúde anda invejosa,
Por ver estar tão formosa
Em vós essa infermidade.

Não façais logo detença.
Senhora, em estar doente.
Porque adoecerá a gente
Com desejos da doença.

Que eu, por ter, formosa dama,
A doença que em vós vejo,
Vos confesso que desejo
De cair comvosco em cama.

Se consentis que me vença
Deste mal, não houve gente
Da saúde tão contente,
Como eu serei da doença.

Mote

Da doença em que ora ardeis
Eu fora vossa mezinha.
Só com vós serdes a minha.

Voltas

É muito para notar
Cura tão bem acertada.
Que podereis ser curada
Somente com me curar.
Se quereis, dama, trocar.
Ambos temos a mezinha.
Eu a vossa, e vós a minha.

Olhai que não quer Amor,
Porque fiquemos iguais,
Pois meu ardor não curais,
Que se cure vosso ardor.
Eu cá sinto vossa dor;
E se vós sentis a minha.
Dai e tomai a mezinha.

Mote

Com razão queixar-me posso.
De vós, que mal vos queixais;
Pois, senhora, vos sangrais,
Que seja num corpo vosso.

Voltas

Eu, para levar a palma,
Com que ser vosso mereça,
Quero que o corpo padeça
Por vós, que delle sois alma.

Vós do corpo vos queixais;
Eu queixar-me de vós posso,
Porque, tendo um corpo vosso,
Na minha alma vos sangrais.

E sem fazer differença
No que de mi possuís,
Pelo pouco que sentis,
Dais á minha alma doença.

Porque dous aventurais ?
Oh não seja o dano nosso !
Sangre-se este corpo vosso,
Porque, minha alma, vivais.

E inda, se attenderdes bem.
Seguis medicina errada,
Porque, para ser sangrada,
Uma alma sangue não tem.

E pois em mi sarar posso
Males, que à minha alma dais,
Se inda outra vez vos sangrais,
Seja neste corpo vosso.

Tudo me leva a crer que a doença a que se refere aqui o poeta é a mesma de que fala Fr. Miguel Pacheco, na seguinte passagem: «Enfermo vna vez de tercianas, con alguna malignidad; hallauanse los médicos con cuidado; mas nuestra Princesa, haziendo menos caso de los socorros de Hypocrates y Galeno, acudio a buscarlos en la Reyna del Cielo. Ordeno a su confessor fuesse a pedirlo a la milagrosa imagen de la Luz, que se venera en templo que dista poco de Lisboa,... y celebrada en su iglesia la missa, se traxesse vna cantarilla de agua, de vna admirable fuente que corre debaxo de su altar... Beuio esta Princesa (la salud), porque, en el mismo punto que tomo el agua, se despidio la calentura y cesso la enfermidad».

Cortesia de wikipedia
Em que fase se achavam os amores do poeta, quando escreveu os versos que ficam transcritos?
O tom geral que neles domina, ao mesmo tempo que indica não ser considerada grave a doença da infanta, mostra também que, para a ardente paixão do poeta, já ia tardando o remédio:

Olhai que não quer Amor,
Porque fiquemos iguais,
Pois meu ardor não curais,
Que se cure vosso ardor.

Camões achava-se, me parece, na fase em que tanto o incomodava a indiferença da infanta. Já havia chegado ou  estava próxima a ocasião de perguntar a si próprio:


Se esta dor tão conhecida
Me não vêem, porque não querem,
Que farei para me crerem ?

Confirmam esta conjectura as redondilhas seguintes:

Olhai que dura sentença
Foi Amor dar contra mi :
Que, porque em vós me perdi,
Em vós me busque a doença !

Claro está
Que em vós só me achará ;
Que em mi, se me vem buscar,
Não poderá mais achar
Que a forma do que foi já.

Que, se em vós Amor se pôs.
Senhora, é forçado assi.
Que o mal, que me busca a mi,
Que vos faça mal a vós.

Sem mentir,
Amor me quis destruir
Por modo nunca cuidado ;
Pois ha de ser já forçado
Pesar-vos de vos servir.

Mais sois tão desconhecida,
E são meus males de sorte,
Que vos ameaça a morte,
Porque me negais a vida.

Se por boa
Tal justiça se pregoa.
Quando desta sorte for.
Havei vós perdão de Amor,
Que a parte já vos perdoa.

Mas o que mais temo, emfim,
É que, nesta differença,
Que se não torne a doença,
Se me não tornais a mim.

De verdade,
Que já vossa humanidade
De que se queixe não tem,
Pois para as almas também
Fez Amor infermidade.

Para festejar o restabelecimento da saúde da infanta, escreveu Camões a bela canção 19, que o visconde de Juromenha publicou pela primeira vez.

Continua.
Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/JDACT