quinta-feira, 5 de maio de 2011

Luís de Camões. Os Lusíadas. Canto II: Parte III. «... Mas pois saber humano nem prudência enganos tão fingidos não alcança, ó tu, Guarda Divina, tem cuidado de quem sem ti não pode ser guardado!»

Cortesia de institutocamoes

OS LUSÍADAS
Canto II

( ... )
«Bem nos mostra a Divina Providência
Destes portos a pouca segurança,
Bem claro temos visto na aparência
Que era enganada a nossa confiança;
Mas pois saber humano nem prudência
Enganos tão fingidos não alcança,
Ó tu, Guarda Divina, tem cuidado
De quem sem ti não pode ser guardado!

«E, se te move tanto a piedade
Desta mísera gente peregrina,
Que, só por tua altíssima bondade,
Da gente a salvas pérfida e malina,
Nalgum porto seguro de verdade
Conduzir-nos já agora determina,
Ou nos amostra a terra que buscamos,
Pois só por teu serviço navegamos.»

Ouviu-lhe estas palavras piadosas
A fermosa Dione e, comovida,
Dantre as Ninfas se vai, que saüdosas
Ficaram desta súbita partida.
Já penetra as Estrelas luminosas,
Já na terceira Esfera recebida
Avante passa, e lá no sexto Céu,
Pera onde estava o Padre, se moveu.

E, como ia afrontada do caminho,
Tão fermosa no gesto se mostrava
Que as Estrelas e o Céu e o Ar vizinho
E tudo quanto a via, namorava.
Dos olhos, onde faz seu filho o ninho,
Uns espíritos vivos inspirava,
Com que os Pólos gelados acendia,
E tornava do Fogo a Esfera, fria.

E, por mais namorar o soberano
Padre, de quem foi sempre amada e cara,
Se lh’ apresenta assi como ao Troiano,
Na selva Ideia, já se apresentara.
Se a vira o caçador que o vulto humano
Perdeu, vendo Diana na água clara,
Nunca os famintos galgos o mataram,
Que primeiro desejos o acabaram.

Os crespos fios d’ ouro se esparziam
Pelo colo que a neve escurecia;
Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,
Com quem Amor brincava e não se via;
Da alva petrina flamas lhe saíam,
Onde o Minino as almas acendia.
Polas lisas colũnas lhe trepavam
Desejos, que como hera se enrolavam.

Cum delgado cendal as partes cobre
De quem vergonha é natural reparo;
Porém nem tudo esconde nem descobre
O véu, dos roxos lírios pouco avaro;
Mas, pera que o desejo acenda e dobre,
Lhe põe diante aquele objecto raro.
Já se sentem no Céu, por toda a parte,
Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.

E mostrando no angélico sembrante
Co riso ũa tristeza misturada,
Como dama que foi do incauto amante
Em brincos amorosos mal tratada,
Que se aqueixa e se ri num mesmo instante
E se torna entre alegre, magoada,
Destarte a Deusa a quem nenhũa iguala,
Mais mimosa que triste ao Padre fala:

 – «Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso,
Que, pera as cousas que eu do peito amasse,
Te achasse brando, afábil e amoroso,
Posto que a algum contrairo lhe pesasse;
Mas, pois que contra mi te vejo iroso,
Sem que to merecesse nem te errasse,
Faça-se como Baco determina;
Assentarei, enfim, que fui mofina.

«Este povo, que é meu, por quem derramo
As lágrimas que em vão caídas vejo,
Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo,
Sendo tu tanto contra meu desejo;
Por ele a ti rogando, choro e bramo,
E contra minha dita enfim pelejo.
Ora pois, porque o amo é mal tratado;
Quero-lhe querer mal, será guardado.
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