Cortesia de paineis
Painel dos Cavaleiros
Parte 2.
Uma pérola e uma cruz partida
O simples facto de dois dos cavaleiros presentes, e próximos, ostentarem ao pescoço objectos difíceis de explicar literalmente mas com conotações simbólicas muito claras, e opostas é, por si só, uma forte indicação em favor da hipótese da existência de uma charada.
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De alguma forma, e tal como a cruz partida suspensa do pescoço do cavaleiro roxo pelo lado da fractura, o pequeno objecto esférico ao pescoço do cavaleiro verde parece situar-se fora do mundo material:
- a sua esfericidade mostra não se tratar obviamente de uma pedra preciosa ou de um cristal e, em rigor, o seu brilho e transparência sugerem mais o género de abstracção manifesto num conceito materialmente impossível como o de uma esfera perfeita de cristal, que o oriente mais ou menos nacarado de uma pérola real.
«Pérola» é, no entanto, a mais simples designação susceptível de transmitir a caracterização simbólica desejada.
Nota: Como se sabe, o próprio céu medieval era composto de esferas de cristal perfeitas e concêntricas, que no seu movimento emitiam notas musicais puras. Mas note-se como a dificuldade de digerir os símbolos presentes nos painéis conduz, mais uma vez, a extremos de imaginação mal dirigida por parte das aproximações literalistas que, ao recusarem a elevação da leitura ao domínio platónico, se condenam a um permanente pântano de absurdos: se, como já se pretendeu, o pequeno objecto simultaneamente redondo como uma pérola e translúcido como um cristal, pudesse ser reduzido à condição de um bezoar de ouriço – um cálculo ou concreção desenvolvido no aparelho digestivo desse mamífero (ou talvez de um porco-espinho), com supostas virtudes para-medicinais e de antídoto contra os venenos que, com toda a probabilidade, se afastaria muito mais do objecto presente nos painéis do que uma simples e simbólica «pérola» de cristal – ocorreria perguntar por que razão semelhante maravilha da Natureza teria passado de moda com o progresso da medicina, como a própria defesa da tese se apressa a informar-nos. Com efeito, não se compreende muito bem de que forma a medicina iria interferir com o mercado da ourivesaria ou o culto dos belos objectos, e o certo é que continua a existir uma grande procura de cálculos de ostra, enquanto que os cálculos de ouriço passaram à história nas sociedades cientificamente desenvolvidas. A tentação de imaginar que os bezoares eram belos e valorados pelo seu aspecto estético é compreensível, dados os preços astronómicos que atingiam e a prática de os montar em ourivesaria devido à conveniência de acompanharem sempre os seus possuidores, como amuletos e antídotos contra a «peçonha», mas a verdade é que esses objectos, de forma geralmente arredondada mas irregular, com aspecto terroso e manchado, e completamente opacos, não se podem confundir com pequenas esferas cristalinas.
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Segundo tudo indica, o ouriço capaz de gerar pérolas, ou pequenas esferas de cristal, no seu tubo digestivo, tem uma existência tão real como a proverbial galinha dos ovos de ouro. O interessante artigo sobre bezoares de Peter Borschberg (2006) poderá encontrar numerosas imagens a cores de tais objectos (que ainda hoje atingem cotações elevadas no Sueste Asiático), e de que citamos a seguinte passagem:
- «Da perspectiva de um ourives, e muitos ourives famosos negociaram em pedras de bezoar, deve-se especificamente indicar aqui que a maioria de pedras bezoar não eram atraentes e em muitos casos eram simplesmente feias. Contudo, não era a sua aparência ou lustro que as tornava tão preciosas para o seu proprietário, mas antes o seu valor como medicina potencialmente salvífica, como amuleto, feitiço ou mesmo talismã». As imagens que acompanham o artigo falam por si.
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Haveria, sem dúvida, alguma justiça poética na identificação do conde de Ourém através de um cálculo de ouriço, como a tese do bezoar pretende, mas será talvez mais prudente aguardar o visionamento de uma dessas jóias (os ouriços não se extinguiram) que possa ser confundida com uma pérola de cristal, e entrementes proceder a uma outra identificação através de um melhor cálculo, como adiante se verá.
Note-se ainda que, embora o uso de pérolas como adornos masculinos fosse corrente, a singularidade de uma pérola isolada pendente de um amplo colar de ricos elementos repetidos em estilo de ordem de cavalaria, é inédita e parece representar algo mais que uma simples peça de ourivesaria ornamental.
A «ordem da Pérola», no entanto, jamais existiu, e a «ordem da Cruz Partida» muito menos. Assim sendo, a intenção do pintor parece ter sido a de mostrar, sempre de modo discutível e disfarçado, porque mesmo nos nossos dias, a cruz partida continua a intimidar os estudiosos, a figura verde como a de um cavaleiro virtuoso e sem mácula, exemplo de perfeição e polimento, e a figura roxa como a de um cavaleiro em desgraça, talvez culpado de traição ou má-fé, conforme o símbolo acusatório parece indicar. Muito mais excessiva que esta suposição parece ser a sua alternativa: o pintor teria reproduzido dois objectos altamente inverosímeis e de significados opostos ao pescoço de duas figuras tão próximas e, como veremos, contrastadas de múltiplas outras formas, por mero acidente ou distracção...». In Painéis de São Vicente de Fora.
Cortesia de Painéis/JDACT