domingo, 2 de outubro de 2011

Daniel Innerarity: O Futuro e os seus Inimigos. «Estamos a realizar aquilo a que Alexander Kluge chamou “um ataque do presente ao resto do tempo”. Quanto mais vivemos para o nosso próprio presente, menos condições temos para compreender e respeitar os “agoras” dos outros»

Cortesia de universico

A Tirania do Presente
«O tema do conflito entre as gerações tem uma longa história na qual vou escolher apenas um precedente histórico que nos possa servir de contraste com e situação actual. O ideal revolucionário reivindicava uma espécie de «autodeterminação geracional» como princípio que se esgrimia contra os mortos. Condorcet, Jefferson ou Paine, por exemplo, escreveram páginas gloriosas em que impugnavam o direito de uma geração de condicionar as seguintes. As codificações do direito civil por volta de 1800 puseram em movimento um enorme debate sobre os direitos de herança, de transmissão da propriedade, debate que fazia parte de uma mesma luta contra o poder da tradição. Durante a primeira metade do século XIX sucederam-se as narrativas que punham em causa a figura do fideicomisso e do morgadio. O que os preocupava, na ordem de desequilíbrio das gerações, era o peso das anteriores sobre as actuais, o privilégio dos mortos frente à liberdade dos vivos.

Pode estar a acontecer que hoje sejamos nós, os actualmente vivos, quem está a exercer sobre o futuro uma influência análoga àquela que os revolucionários quiseram impedir. O que nesse tempo era a continuidade da tradição é hoje uma rapina do futuro. A externalização dos efeitos do presente num futuro que não nos diria respeito torna-se uma verdadeira irresponsabilidade organizada. Há uma espécie de impunidade no âmbito temporal do futuro, um consumo irresponsável do tempo ou expropriação do futuro de outros. Estamos e ser os “ocupes” do futuro. Estamos a realizar aquilo a que Alexander Kluge chamou “um ataque do presente ao resto do tempo”. Quanto mais vivemos para o nosso próprio presente, menos condições temos para compreender e respeitar os «agoras» dos outros.

Cortesia de wikipedia

Quando os contextos de acção se estendem no espaço até atingir pessoas do outro extremo do mundo, e no tempo condicionando o futuro de outros, próximos e distantes, então há muitos conceitos e muitas práticas a pedir uma profunda revisão. Este entrelaçamento, espacial mas também temporal, deve ser considerado reflexivamente, o que significa tornar transparentes os condicionamentos implícitos e fazer deles objecto de processos democráticos. Uma das exigências éticas e políticas fundamentais consiste precisamente em ampliar o horizonte temporal. Dito sumariamente: deixar de considerar o futuro como lixeira do presente, como “espaço de descarga”, lugar para onde são lançados os problemas não resolvidos a fim de alinhar o presente.

Mas a verificação de que o destino das gerações está tão entrelaçado como os espaços da mundialização questiona a nossa ocupação do futuro. Se a responsabilidade acerca do futuro se transformou num problema agudo, é porque houve uma expansão dos cenários futuros que devemos levar em conta para as nossas actuais decisões e planificações. É a" consequência do alongamento das cadeias causais que nos vinculam espacial e temporalmente. Os processos de modernização são, entre outras coisas, processos de crescentes dependências recíprocas no espaço, o que, no aspecto temporal do assunto, faz aumentar as dimensões cronológicas do futuro a que agora nos referimos explicitamente.

Cortesia de wikipedia

A nossa actuação tem de facto tal influência no futuro que (e responsabilidade moral exige que tenhamos em conta nas decisões do dia-a-dia o bem daqueles que vão ser atingidos e não são consultados. A responsabilidade sobrevém-nos involuntariamente da incrível extensão do poder que diariamente exercemos ao serviço do que nos é próximo, mas que sem querer fazemos actuar à distância.

Este tipo de evidências pôs em movimento todo um conjunto de novas reflexões sobre a justiça intergeracional. As discriminações ligadas à idade ou à condição geracional (se uma geração se impõe a outra ou vive à sua custa) apresentam particulares desafios ao exercício da justiça. Na sua maioria, as decisões políticas que tomamos produzem efeitos nas gerações futuras. Por exemplo: os problemas da segurança social (saúde, pensões, desequilíbrios demográficos, subsídios de desemprego) necessitam de um amplo enquadramento temporal e de um tratamento cognitivo que tenha em conta os possíveis cenários futuros. Será moralmente aceitável transmitir às gerações futuras os resíduos nucleares, ou um ambiente degradado, ou uma dívida pública considerável, ou um sistema de pensões insustentável?» In Daniel Innerarity, O Futuro e os seus Inimigos, Teorema, 2011, ISBN 978-972-695-960-1.

Cortesia de Teorema/JDACT