Cortesia de editorialresistencia
«Duas cadeiras de braços, muito bem trabalhadas, muito ricas pertencem também a esta sala. Régio, no decorrer da sua doença, porque não podia estar deitado na cama, permanecia sentado, muito sustentado por almofadas, numa delas. Foi numa delas que ele morreu. Recorda-me agora um dia, do último verão, em que estávamos nessa sala a conversar. Louvávamos a beleza e até o conforto destas duas cadeiras. Eu, mais atrevido e jovem, sugeri que seria numa delas que ele, poeta, deveria adormecer para o sono da eternidade. Sorriu-se para mim mas acenou-me com um sinal de enfado como a indicar-me que não gostava que ,lhe falasse naquele assunto. Quase como quem vai dar uma sapatada, acenou-me que me calasse e eu assim fiz. Mas mal pensava eu e muito menos ele decerto que seria mesmo numa dessas cadeiras que ele iria morrer.
Nesta sala foi feita a câmara ardente do nosso grande Régio. Entrei. Dormia ele placidamente de mãos cruzadas sobre o peito, dentro da urna, última guarda do seu corpo. Quatro velas e uma lamparina de azeite ardiam e bailava a sua chama a um sopro de corrente que fazia. As empenas das janelas não haviam sido fechadas e o sol batia suavemente nos móveis da sala, nos seus pés juntos com um ramo de violetas já a emprestar um ar de vida. Uma pequena mesa junto à cabeceira, com uma linda Nossa Senhora com o Menino ao colo; por cima, o grande Cristo de braços abertos, sem dedos, preso na parede sem cruz e Régio dorme tranquilamente. Uma única pessoa, neste momento, vela junto do seu corpo, é o seu particular amigo, o poeta Alberto Serpa.
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Ficámos os dois - eu e Alberto Serpa. Em breve, chegou o irmão de Régio, o Júlio. Alberto Serpa foi para junto dele. Eu fiquei sozinho com o corpo do poeta. Chegou depois o irmão mais novo, o João Maria. Falámos. Foi ele o primeiro a relatar-me a última noite e contou-me os pormenores daquele passamento suave. Foram chegando outras pessoas.
Voltei a casa e levei a minha filha, de seis anos, para ver o Régio. Ela foi e tagarela como todos os pequenos, gostou de ir e encheu-me de perguntas. Isabel Maria ficará sempre com uma imagem do poeta que dorme agora o sono eterno. Muitas vezes o viu aqui em casa, mas isso podia-lhe passar despercebido. Suponho que é a primeira pessoa morta que ela viu e isso ficar-lhe-á na memória.
No dia seguinte, foi o enterro, pelas 4 e meia da tarde. Um grande acompanhamento, muita gente, muitos amigos e admiradores vindos de fora da terra. Da Sua, porém, pouca gente. Ninguém é profeta na sua terra e Régio parece que tinha poucas pessoas que o admiravam na sua dimensão nacional. Entretanto, a família de Régio, pensando que cumpria um desejo dele, queria que fosse celebrada uma missa de corpo presente, na câmara ardente, em casa; essa missa seria celebrada pelo Padre João Marques. Tentou-se isso e, de princípio, parece que não houve dificuldades. O Prior de Vila do Conde, depois de conversar com o padre João, não via qualquer obstáculo e a missa seria celebrada às l0 horas da manhã. O prior, entretanto, fez consulta para o Paço arquiepiscopal sobre o assunto. O arcebispo, D. Francisco Maria da Silva, em resposta não permitia que se celebrasse a missa em casa do poeta; podia-se celebrar quantas missas se quisesse de corpo presente, mas não em casa, privilégio concedido a católicos exemplares que não era o caso de Régio.
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Entre os assistentes, senhoras principalmente, gerou-se uma onda de protestos. Uma delas mesmo, depois do Dr. Cruz Pontes ter tentado com um telefonema seu demover o arcebispo da decisão tomada, tentou telefonar para o Cardeal Patriarca. D. Francisco Maria da Silva, em resposta ao telefonema do Dr. Cruz Pontes, continuava na negativa e justificava que, em consciência, não podia permitir tal privilégio a uma pessoa que, em vida, através dos seus escritos não se confessou católico e até tinha negado a divindade de Jesus Cristo. Não sei se a senhora, emocionada, chegou ou não a telefonar ao Cardeal-patriarca. O assunto ficou mais ou menos calmo, sem missa em câmara ardente, depois de um primo do poeta ter afirmado que se a José Régio agora fosse permitido optar ele estaria a dar razão ao arcebispo.
O P. João Marques, nesse dia, queria celebrar uma missa sufragando a alma de José Régio e, na presença do seu corpo ou longe dele, celebrá-la-ia. Em virtude da autorização desejada ter sido negada, resolveu-se que a missa seria rezada na Igreja de S. Francisco. Partiu-se para lá. O Dr. Luís Amaro dizia que era quem devia ajudar à missa. Seria uma maneira de tentar reconstituir uma outra missa celebrada, em Ponte de Lima, no dia 1 de Dezembro, suponho de 1967, pelo meio-dia, na Igreja Matriz. José Régio tinha assistido a essa missa celebrada em latim, pelo P. João Marques e acolitada por mim, com a devoção de cristão católico mais fervoroso. A várias pessoas confessou Régio que esta missa, lhe tinha tocado profundamente o interior. O Dr. Luís Amaro, numa homenagem a Régio, queria que esta fosse agora uma reconstituição daquela». In Paulo Ferro, A Dez Anos da Morte de José Régio, Editorial Resistência SARL, 1980.
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