Cortesia de leloeirmaoeditores
NOTA: Texto na versão original
«Por a empresa que tomei de screuer dos prìmordios do reino de portugal, & de seus Principes, cousas tam differentes das historias até agora recebidas, & approuadas, bem vejo a quanto perigo me ponho com todos, & quam audaz, & temerario negocio parecerá condenar eu por apocryphas cousas tam sabidas de todos, & nunqua postas em duuida, & que sendo acceptas per discurso de tantos annos, parecem ser sagradas, & inuiolaueis. Mas confio, que os homeês que com entendimento, & sem paixão me lerem, terão meu trabalho por bem empregado, & ser mais digno de agradescimento, que de reprehensaõ.
Porque a mi não me moueo amor, odio, ou sperança de algum interesse de Principes, que ha quinhentos annos que passarão, nem cobiça de ganhar honra com authores mortos, que ja por si não podem tornar, & que sendo viuos não se poderão defender. Mas desejo de mostrar a verd.ade, que todos os boõs deuem seguir, & abraçar, & que per si se descobre, & manifesta. Moueome principalmente a muita indignação que tinha de ver, por culpa dos antigos, & negligencia dos presentes, maculada a honra, & fama de múitos principes, & Princesas deste Reino, de que se podérão recontar muitas heroicas virtudes contrarias aos males, que lhes falsamente impoem contra o costume de todas nações, que nas historias que fizerão de seus Reis, sempre buscarão as mais notaueis virtudes, & honrosas partes que tiuerão, para honrarem suas memorias. Chegauase a isto que muitos historiadores, por verem o dano que trazem historias erradas, & a toruação, que dão ao entendimento, emendarão as que outros escreuerão, sem por isso os notarem de alguma culpa.
Polo que em erros tam manifestos não me deuem attribuir à temeridade, metter maão aos emendar. Porque não vim ao fazer tam desajudado de algumas partes. Qua alem da natural inclinação que desde moço tiue aa lição das historias, não soomente lij as de Hespanha; mas por a noticia que tinha de algumas lingoas, lij quasi todas as de Europa, alem da muita noticia que tiue do tombo Real do reino, que muitas vezes reuolui para cousas de seruiço de sua Majestade, & do cartorio de Lisboa que reuolui no tempo que lhe reformei suas posturas, & regimentos, a fora muitas scripturas de doaçoês, testamentos, titulos de sepulturas, & contractos de moesteiros do reino, & de fora delle, & liuros dos concilios, de que me ajudei, para auerigoar muitas cousas pela razão dos tempos, que he o norte das historias.
Cortesia de purl
E para que nos não attribuão a arrogancia contarmos o nosso por verdadeiro, deixando o antigo esquecido, referiremos primeiro o que reprouamos, & despois contaremos o que damos por verdadeiro, imitando tambem nisto os boõs lauradores, que primeiro que semeem a terra, arrancão os espinhos, & heruas maas, que a occupauão. E para que os que se contentão mais do antigo, o tenhão sempre diante, & sigão o que lhes melhor parecer. E vindo a nossa historia faremos principio do Conde Dom Henrique, de que os Reis de Portugal descendem. Do qual por grande discuido, & rudeza dos antigos, não se sabe sua linhagem, nem patria em certo. O que não he pequena afronta para hum reino florentissimo, & tam grande, como he o de Portugal, que o tem por author, não sendo seus tempos tam distantes dos nossos, como forão os dos Condes de Castella, & Aragaõ, cujos nomes & origem souberão sempre seus vassallos. Polo que como hús o fazem de húa prouincia, outros de outra, & ficou sua patria tam incerta, referindoa a diuersas naçoês, foime necessario discorrer per historias de outras gentes, para auerigoar a opinião, que de sua patria & linhagem se deue ter, pois trato de escreuer as vidas dos Reis de Portugal, que delle tem origem. E porque os que do Conde Dom Henrique tratarão com razão os Poúugueses tinhão obrigação de dar mais razão da verdade de sua origem, & a elles se deuem arrimar todos os que a não souberem, começaremos da opinião que teue Duarte Galuão, a que tocaua tirar a duuida que sobre isso hauia como Portugues, secretario del Rei, & seu chronista, & pessoa de grande authoridade. O qual na vida del Rei Dom Afonso Henriquez affirma o Conde Dom Henrique seu pai ser filho de hum Rei de Vngria, não declarando de que Rei, nem dando razão de sua vinda a Hespanha, seguindo soomente (como sta dito) o que achou em algûa memoria pouco authentica, ou na fama popular.
Cortesia de alvorsilves
Mas quem com diligencia reuoluer as historias daquelle reino, & começar a contar do tempo de Stephano primeiro Rei Christão, atee o de Latlislao, que morreo no anno de nosso Senhor IESV Christo de M.XCV. quando ja Dom Afonso Henriquez era nascido, não achará que Rei algum de Vngria tiuesse filho per nome Henrique, nem outro que a estas partes pudesse vir. Porque aquelle Stephano primeiro Rei, que foi sancto & canonizado, foi filho unico de Geysa Duque de Vngria & da Duquesa Saroltha sua molher, & nasceo no anno de DCCCCLXIX. No qual tempo não podia o Conde Dom Henrique ser nascido, pois vindo como caualleiro auentureiro ganhar honra, que necessariamente auia de ser mancebo, & deixando seu fllho Dom Afonso de xviij annos, & segundo alguns de menos, falleceo no anno de M.CXII. como adiante se dirá.
Este Rei Stephano morreo sem filhos. Porque hum soo que teue por nome Emerico, sendo casado faleceo santo & virgem em vida de seu pai no anno de M.XXXI. Polo que a el Rei Stephano succedeo Pedro seu sobrinho filho de huma sua irmaã. O qual sendo priuado do reino pelos Vngaros por sua dissoluta vida, & desterrad.o, & acolhido a Bauaria, foi substituido em seu lugar Aba, cunhado do mesmo Rei Stephano. Mas Aba não durou muito. Porque por seus vicios & incontinencia, que veo ser tanta, que tinhão os Vngaros saudade do tempo de Pedro, juntos em huma conspiração, com ajuda do Emperador Henrique o. III. o matarão, não ficando delle filhos: & a Pedro restituirão a seu antigo stado». In Tesouros da Literatura e da História, Crónicas dos Reis de Portugal, reformadas por Duarte Nunes de Leão, Lello e Irmão, Editores, 1975, Porto.
Cortesia de Lelo e Irmão Editores/JDACT