sábado, 22 de outubro de 2011

José Marques. Os Castelos algarvios da Ordem de Santiago no reinado de D. Afonso III: «A extensão do texto leva-nos a afirmar, em linhas gerais, que ele é desfavorável à Ordem, chegando a intimá-la a renunciar às doações da vila de Tavira e de Cacela, feitas ao Mestre e à Ordem, impondo-lhe igualmente outras cláusulas limitativas da sua influência no Algarve»


Fortaleza de Castro Marin
Cortesia de separatarevistacaminiana

Relações entre a Ordem de Santiago e D. Afonso III
«O documento não é tão expressivo como gostaríamos de ver, mas revela a existência de “controvérsias, causas e questões” entre a Ordem de Santiago e o rei, por causa de Tavira, Cacela, Castro Marim, no termo de Cacela, e Aveiras, questionando-se os direitos de padroado das igrejas feitas e por fazer e problemas conexos com o pão, vinho, etc., que os moradores de Mértola levavam pelo rio Guadiana.

Para dirimir o litígio foram nomeados os seguintes juristas:
  • Gomes das Leis, cónego de Samora, o doutor Frei Geraldo, dos Dominicanos de Lisboa, e Domingos Eanes, cónego de Évora. O processo conducente a esta composição, cuja decisão final está datada de 4 de Janeiro de 1272, iniciou-se no ano anterior, conforme se verifica pela procuração para o efeito, passada pela Ordem de Santiago, em 3 de Novembro de 1271, em Mérida, e pelo compromisso de respeitarem a decisão dos árbitros, assumido pelas duas partes, em 30 de Dezembro de 1271.
A extensão do texto leva-nos a afirmar, em linhas gerais, que ele é desfavorável à Ordem, chegando a intimá-la a renunciar às doações da vila de Tavira e de Cacela, feitas ao Mestre e à Ordem, impondo-lhe igualmente outras cláusulas limitativas da sua influência no Algarve.

Na sequência desta deliberação, em 7 de Janeiro de 1272, depara-se com a renúncia da Ordem, de que ainda era mestre Paio Correia, às referidas doações de Tavira, Cacela, Castro Marim e seus termos «a regibus portugaliae factis vel a quocumque alio si fieri potuerint et confirmationibus a domino Papa vela ab aliquibus aliis super predictis locis et omnibus instrumentis, litteris, actionibus nobis et Ordinis, super supradictis locis quoad temporaria competentibus et promitmus sub pena decem milium marcorum puri et examinati argenti prout in sententiam latam per viros predictos et discretos… prenius continetur …».

Cortesia de separatarevistacaminiana

Como interpretar estes factos?
Embora menos claro, cremos que se trata de um processo de certo modo paralelo, conquanto ligeiramente mais tardio, ao desencadeado pelo bispo D. Bartolomeu e pelo cabido de Silves para eliminar a influência de Afonso X no Algarve através do direito de padroado e outras doações pessoais. A nossa hipótese parece confirmar-se pelo facto de a renúncia incluir apenas a área litigiosa entre Afonso X e Afonso III, o Algarve. Com efeito, as velhas possessões da Ordem, como Palmela, Alcácer, Arruda, Almada, Sesimbra e outras, sitas em territórios inquestionados e inquestionáveis não foram sequer mencionadas. É que estes territórios, à semelhança do que acontecia com o Entre-Minho-e-Lima integrado na diocese de Tui, não ofereciam qualquer obstáculo à soberania do rei português, apesar de terem sido confiados à Ordem de Santiago. O mesmo já se não podia afirmar em relação ao Algarve, onde a situação histórica era diferente, apesar de recentemente resolvida pelo tratado de Badajoz. Aí havia direitos e, em especial, a soberania portuguesa a acautelar ...

Renunciando a estas terras e direitos, o mestre D. Paio e a Ordem, consciente ou inconscientemente, deixavam o rei de mãos livres para confiar essas áreas a quem quisesse, sem perigo para a autonomia nacional.
De facto, a partir de então, a Ordem de Avis vai colher alguns benefícios, doando-lhe D. Beatriz o castelo de Moura, por carta passada em Sevilha, em 8 de Janeiro de 1284, e entre [1300 e 1309], com data de 20 de Janeiro, D. Dinis doou ao mestre Lourenço Afonso o castelo de Paderne, etc. Os factos expostos terão mesmo preparado o desmembramento da Ordem de Santiago, consumado em 1288, com a eleição de um mestre para o território português, autorizado pelo Romano Pontífice. Iniciou-se, assim, um litígio que só viria a ser dirimido no século XV.

Doação do castelo de Aimonte à Ordem de Santiago
Cortesia de separatarevistacaminiana

Conclusão
Dos factos descritos podemos tirar as seguintes conclusões:
  • Os castelos - incluindo sob este vocábulo a estrutura arquitectónica do sistema defensivo, a parte urbana e o termo circundante, constituíram a base da administração e ordenamento do território algarvio após a reconquista, independentemente dos seus primeiros titulares da fase cristã serem pessoas singulares ou instituições eclesiásticas;
  • O acesso da Ordem de Santiago à posse de alguns castelos do Algarve processou-se com relativo atraso e por fases, partindo da periferia para o interior;
  • A presença da Ordem de Santiago no Algarve, para além da acção desenvolvida durante as campanhas da reconquista, constituía um notável factor da influência de Afonso X em Portugal, mesmo depois do tratado de Badajoz (1267), dado que a casa-mãe da Ordem estava em Uclés, no reino de Castela;
  • Mercê da acção desenvolvida por D. Afonso III e à semelhança das posições tomadas pelo bispo de Silves, D. Bartolomeu, e pelo Cabido da Sé, também a Ordem de Santiago, ainda na vigência do mestrado de D. Paio Peres Correia, que só viria a falecer em Velhos, no dia 10 de Fevereiro de 1275, sendo sepultado em Tavira, pôs termo à influência de Afonso X a ocidente do Guadiana;
  • Estes factos, além da estratégia política que lhes está subjacente, revelam, em nosso entender, um robustecimento da «consciência nacional» e um profundo anseio de independência absoluta;
  • Impõe-se, contudo, continuar a aprofundar estas questões, fazendo a contraprova desta interpretação com a análise do que se passou, sobretudo, com a Ordem de Avis».
In José Marques, Os Castelos algarvios da Ordem de Santiago no reinado de D. Afonso III, Separata da Revista Caminiana, Ano VIII, Braga 1986.

Cortesia de Revista Caminiana/JDACT