Cortesia de foriente
Introdução à leitura da Década Quarta de Diogo do Couto
«Baião diz que o cronista foi contemplado com um novo cargo, escrivão da alfândega de Diu, em 29 de Março de 1601. A decisão real nesse sentido teria sido, aliás, pela primeira vez redigida em 28 de Janeiro de 1598. Nesse ano o ordenado do historiador foi aumentado em cento e vinte mil réis pelo «trabalho que [tinha] na escritura da Índia». Veríssimo Serrão entende que foi a um homónimo do autor das Décadas, e não a ele mesmo, que o rei fez mercê do tal cargo. É curioso haver um documento, já publicado por Rivara, que, em 2 de Agosto de 1584, fazia «um» Diogo do Couto escrivão da alfândega de Ormuz.
Certo é que, em 1601, compôs e concluiu o nosso Diogo do Couto a primeira versão da “Década 7”. Abrange esta o período que vai de 1554 a 1564. O manuscrito foi mandado para o reino na armada desse ano, na nau “Santiago”. Infelizmente, segundo afirmaria Couto mais tarde, a nau teria sido atacada, e o manuscrito ter-se-ia perdido, ou teria sido levado pelos atacantes. Estes teriam sido, segundo o próprio Couto, marinheiros ingleses. Boxer acredita na abordagem e no roubo, mas rectifica: zelandeses.
O ano de 1602 traria grandes satisfações ao cronista. Uma carta régia a Aires de Saldanha, datada de 6 de Janeiro, começava por lhe agradecer as últimas Décadas recebidas. Não diz quais. Deve tratar-se da sexta e da décima, porquanto a sétima, como acabamos de ver, não chegara ao seu destino. As directivas dessa carta fundam-se declaradamente em informações prestadas por D. Francisco. Outra carta régia do mesmo mês ao mesmo destinatário, e escrita como a precedente em Valladolid, ordena que se construa um edifício novo que sirva de Tombo em Goa, e se dêem todas as facilidades a Diogo do Couto, a fim de ele poder escrever a história da Índia. Uma provisão régia de 13 de Fevereiro do mesmo ano (1602), insiste por que seja cumprida a provisão precedente (1595), que ordenava a criação do arquivo, e nomeava seu guarda-mor Diogo do Couto. Mas a de 1602, mais minuciosa que a anterior, discrimina o género de documentos que hão-de ser confiados à guarda do arquivista, e consagra, de algum modo, o seu triunfo sobre a opinião restritiva, neste particular, de Matias de Albuquerque.
Cortesia de foriente
Praticamente, devia agora ficar em mãos de Couto toda a documentação que existia na Índia, sem exclusão dos Tombos das aldeias da ilha de Goa, nem dos acervos relativos às circunscrições de Salsete e Bardês, nem dos livros de despachos (tanto organizados como a constituir), nem sequer dos livros de chancelaria. Para se medir o benefício, de que o cronista passava a fruir, convém lembrar que os papéis de Salsete e Bardês se encontravam até então em poder dos vigários das freguesias, e os livros de chancelaria em mãos do próprio governador do Estado. A provisão especifica que, se os párocos se mostrassem renitentes, fossem obrigados pelo arcebispo a entregar os papéis. Única sombra no quadro: o guarda-mor não passaria certidões sem autorização do vice-rei.
Como se a provisão referida não bastasse, Filipe III insistia, em 26 de Fevereiro de 1602, em carta a Aires de Saldanha, por que fossem cumpridas as disposições relativas ao Tombo e ao seu guarda-mor. E escrevera a este último, quinze dias antes, em termos muito lisonjeiros e promissores. Dizia o monarca que tinha visto as Décadas. Considerava-as excelentes. Lera também com atenção uma carta e um apontamento que Diogo do Couto lhe fizera chegar. Reflectira no que ele lhe dizia sobre a Torre do Tombo da Índia, e achava que tinha muita razão. De acordo com os informes prestados por Couto, dera ordens ao vice-rei, que seguiam pelo mesmo correio. Esta última notícia é tão significativa que merece transcrição:
- [...] conforme ao que se contém em vossos apontamentos, mandei passar provisões que irão nestas vias, que mando ao vice-rei Aires de Saldanha, que faça cumprir inteiramente.
Cortesia de foriente
Por estas palavras é reconhecida a Diogo do Couto, na Índia, até perante o vice-rei, uma posição de excepcional importância. O rei aceita ser informado directamente por ele, e o vice-rei recebe provisões e ordens, que deve «fazer cumprir inteiramente», as quais provisões dão seguimento e satisfação às informações e pedidos do cronista. Mais, Filipe III recomenda ao próprio Couto, como a interlocutor privilegiado, que não deixe, POR SEU LADO, de as fazer cumprir. Enfim, manda que Couto continue a prestar-lhe informações. E dá-lhe mesmo a esperança de as decisões da Coroa virem a ser tomadas, em função do que o seu cronista e informador lhe mandar dizer:
- «E vos encomendo muito que de vossa parte procureis a execução delas [provisões enviadas a Aires de Saldanha], e me aviseis de todas as mais coisas, de que vos parecer que devo ter informação, para nelas mandar prover como houver por bem».
Quanto à história da Ásia, ordena Filipe III que Diogo do Couto a vá continuando, e que vá expedindo as Décadas para o reino à medida que as for concluindo. Mas não parece que as sujeite, como antes Filipe II em tempo de D. Francisco, a exame prévio do vice-rei. Dir-se-ia que a posição relativa do vice-rei e do guarda-mor, impossível de fixar em tempo de Matias de Albuquerque, favorável ao vice-rei em tempo de D. Francisco, acabara por se inverter em favor do arquivista-cronista. Mas a impressão das Décadas? Quando já a mais antiga, de Couto, a mais cedo terminada ou seja a “Década 4”, estava no Prelo, protestou Duarte Nunes de Leão. Um texto deste último, publicado por António Baião, explica o ponto de vista e as pretensões do escritor eborense que tão calorosamente defendera o partido de Filipe II na questão sucessória de Portugal.
Duarte Nunes fora incumbido pelo rei de preparar para o prelo o manuscrito da quarta de Barros, por este deixada imperfeita e inédita». In Diogo do Couto, Década Quarta da Ásia, volume I, coordenação de M. Augusta Lima Cruz, Coimbra Martins, Fundação Oriente, 1999, ISBN 972-27-0876-7.
Cortesia da Fundação Oriente/JDACT