Cortesia de assirioalvim
«Na noite de 15 de Julho último, um portuguêsde apelido Vale disparou no Rio de Janeiro um tiro de revólver contra a carruagem do imperador D. Pedro II, quando este saía do teatro Sant'Ana, acompanhado pela princesa herdeira e a imperatriz.
O tiro perdeu-se entre as cabeças da multidão que estacionava à porta do teatro, sem raspar chapéu ou muro, nem dar de si outro sinal que não fosse a detonação, a qual nem chegou a ser ouvida por todas as pessoas do séquito imperial, incluindo a princesa.
Julgou-se em princípio que o regicida fosse um certo Hasslock, redactor de um jornal republicano, homem exaltado, e ao que parece audaz, até à loucura. Mas o delegado da polícia, Bernardino Pereira, que esfuziou nas ruas do Rio, à mira de capturar o indigitado, ao topar este, recebeu de um tal Eduardo Freitas, que acompanhava Hasslock, e passa por amigo particular do conde de Eu, a denúncia de ter sido Vale o verdadeiro autor da tentativa.
Preso o assassino e reconhecido, a polícia interroga-o. É um rapaz imberbe quase, de fisionomia inexpressiva, tez desbotada, e vestígios de orgia na figura. Têm mau passado, e no dizer dos jornais não poucas vezes recorrera, para viver, a expedientes. Do azedume de não achar na conduta medíocre que desenvolvera, a felicidade a que se julgaria com direito, derivou talvez o republicanismo estulto de que costumava fazer estardalhaço. Na primeira entrevista com o director da polícia, Basson, Vale nega terminantemente que seja ele o autor do crime: em caso contrário, até o confessaria com orgulho, pois um tal acto, declara, não faria senão nobilitar pelo martírio, o republicano que em terras de Brasil o perpetrasse.
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Estas declarações desmoronam-se, porém, desde que a polícia chama a perguntas, pela segunda vez, o regicida. E então ele confessa que um homem, cujo nome não disse, o convidara a beber álcool num botequim, travando-se entre os dois disputa acesa, no atinente à sinceridade de convicções antimonárquicas de cada qual; onde o outro declarou ter suspeitas de que em Vale não jogasse a alma heróica de um verdadeiro filho da república.
Por aquele tempo «incendia o cognac» o olhar do rapazola, que dando murros na mesa, reforçava esbaforido os seus protestos de febre jacobina, enquanto o interlocutor, por contraprova, súbito propõe um tiro no imperador D. Pedro II, ao que Vale acedeu, já esfuriado em obsessões de bêbado pimpão. À meia-noite, os dois separam-se: é a hora de sair gente do teatro Sant'Ana, a cuja récita o imperador fora assistir. Já o coche imperial aborda o átrio, e a família do monarca se lhe acomoda dentro, quando sob o látego do sota, os muares destravam o carro, num arranco enérgico de partida. E foi só então que Vale desfechou, sem pontaria, como levando no tiro o propósito apenas do estrondo que chamaria sobre ele as atenções, fazendo-lhe ganhar a aposta, sem recorrência a derrames de sangue, que horrorizavam, parece, o seu espírito inconsistente e aparvalhado.
Cometido o feito, Vale corre através as ruas da cidade, sem jamais escolher as menos frequentadas, nem procurar disfarçar-se entre os passantes, mas detendo-se ao contrário a cada passo, para mostrar aos conhecidos o revólver com o cartucho queimado, cujo destino ele explica, alegre quase, aos que se achegam a lhe escutar os dizeres de gabazola.
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Estamos pois em face dum regicídio picaresco, que salvaguardada a figura venerável do monarca brasileiro, tem diabólicos visos de cena encomendada para emocionar teatralmente a opinião. O regicida, que tem o nome do nosso primeiro actor cómico, é convidado à bebedeira por um personagem misterioso, num botequim de alcunha romanesca, “Café de Londres”, ao soar a hora fatal da meia-noite.
Produz-se o tiro, que nem chega a ser ouvido por todas as pessoas da comitiva imperial, não podendo o próprio autor dele informar mesmo se o cartucho estaria embalado, visto como, de carnífice que estava, nem sequer verificou o estado da arma que lhe deram.
Aqui se deita o comissário Bernardino, reforçado dum capitão que assina Lírio; e os dois de esfuziote inquerem da gentana das ruas, se acaso o regicida sinistro ali passou. De grupo em grupo, e esquina em esquina, lá vai a lei, de que é manipanço o Bernardino, amparada na força, que Lírio exprime pelos seus galões de capitão, seguindo o rasto da fera pelos cheiretes da pólvora que porventura o cano da arma «inda
trescale» (se outro cheiro os não guia, muito mais fedorento e indicador): e em tão boa hora caminham, que vão afocinhar os dois com o amigo particular do conde de Eu. Trava-se alarde. Bernardino viera a fariscar regicídio no republicanismo escamado de Hasslock; Freitas porém salva o amigo da injúria policial, produzindo a denúncia de conhecer o sicário autêntico... por sinal que ainda há bocado vinha a brandir um revólver, rua acima, e ao passar perto dele, estendendo-lhe a mão, dissera até:
- «- Matei agora mesmo o imperador, seu Freitas! É extraordinário como um regicídio abre o apetite! Já viu?... Vamos cear».
In Fialho de Almeida, Carta a D. Luís sobre as Vantagens de ser Assassinado, Assírio & Alvim, edição 1343, 2010, ISBN 978-972-37-1441-8.
Cortesia Assírio & Alvim/JDACT