Refeição, século XV
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A Mesa
«As chamadas “viandas de leite” estão presentes com frequência na alimentação medieval do Português. Por elas se entendiam queijo, nata, manteiga, doces feitos à base de lacticínios, além de, evidentemente, o próprio leite. Este, aliás, consumia-se em muito fraca quantidade. São raras, nas fontes informativas, as referências a leite. Na sua maior parte, transformava-se em queijo e em manteiga. Servia também como medicamento. Mas parece ter-se utilizado pouco para matar a sede ou como alimento «de per si».
Os «lacticínios» tomavam-se em regra como acompanhamentos ou sobremesas. Mas D. Duarte não os aconselhava: que não se comessem natas nem outras “viandas de leite”, consideradas húmidas e por isso nocivas à saúde; ou, a comê-las, que fosse em pouca quantidade e sempre no fim das refeições; e que jamais se bebesse depois de as ter tomado. Apesar disso, o “Tratado de Cozinha” do século XVI insere mais de meia dúzia de receitas de «manjares de leite»:
- manjar branco, pastéis de leite, leite cozido, tigelada de leite, beilhós de arroz, tigeladas de leite de D. Isabel de Vilhena e almogavanas de D. Isabel de Vilhena.
Todos funcionavam como sobremesas. Vejamos uma, ao acaso:
«Tigelada de leite»
Tomarão quatro ovos e açúcar e farinha, que será cinco colheres de prata, em uma escudela, tudo batido; e tomarão uma tigelinha de barro e nela derreterão uma pouca de manteiga, que será tanta como uma noz em cada tigela; e, depois que for derretida, deitarão este polme, que será temperado com sal. Então mandá-la-ão ao forno e levem uma pouca de manteiga para deitar por cima depois que se coalhar. E também se pode fazer de leite cozido e de queijo fresco. E assim se faz a tigelada de arroz cozido, com o leite. E nestss tigeladas de arroz quem quer lhe deita por cima gemas de ovos inteiras».
Ceia
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Ovos consumiam-se com fartura. Praticamente, todas as receitas elaboradas os levavam. A produção de ovos era consequência natural da abundância de criação: galinhas, patas, gansas, pombas. No “Leal Conselheiro”, não se condenam nem prescrevem os ovos: porquanto a sua nocividade ou utilidade variavam conforme as pessoas. O “Tratado de Cozinha” menciona-os cozidos, escalfados e mexidos. A fruta desempenhava papel de relevo nas dietas alimentares medievais, em especial nos países de produção mediterrânea, como Portugal. Conheciam-se praticamente todas as frutas que comemos hoje. Muitas eram autóctones, outras foram introduzidas pelos Árabes. Apenas a laranja doce viria a ser trazida por Vasco da Gama.
A laranja azeda, variedade hoje pouco produzida, tinha funções semelhantes às do limão, aliás também consumido. Certas frutas eram consideradas pouco saudáveis: D. Duarte proscrevia o consumo de cerejas e de pêssegos, por os julgar «vianda húmida». Também o limão se desaconselhava, por «muito frio e agudo». Era uso comer fruta acompanhada de vinho, à laia de refresco, ou como refeição ligeira, própria da noite. Fernão Lopes, ao narrar uma das famosas danças nocturnas de D. Pedro, refere que «andou el-rei assim grão parte da noite, e tornou-se ao paço em dansa, e pediu vinho e fruta». Na “Crónica de D. João I” menciona um facto idêntico, ao dizer:
- «Naquele dia, à noite, pedindo el-rei vinho e fruta...».
Da fruta fresca se passava à fruta seca e às conservas e doces de fruta. Figos secos, passas de uvas, amêndoas, nozes, alfarrobas, castanhas, azeitonas eram objecto de intenso consumo por parte das populações, sem falar já no comércio lucrativo que alimentavam com o estrangeiro. Fabricavam-se conservas e doces de cidra (“casquinhas, diacìdrão”), pêssego (“pessegada”), limão, pera (“perinhas, perada”), abóbora e marmelo (“marmelada, bocados, almívar de marmelo”). De laranja se fazia a famosa “flor de laranja”, simultaneamente tempero e perfume. E até de alface se confeccionava uma conserva especial conhecida por talos:
«Talos de alface»
Depois que os talos da alface forem muito espigados e testos, tomá-los-ão e apará-los-ão muito bem; e tirar-lhes-ão todas as veias e escolherão os mais grossos; e deitá-los-ão em água fria até que os acabem de aparar; e terão um tacho com água a ferver e deitá-los-ão dentro e cozê-los-ão, que passe o alfinete por eles, como por massa; e, enquanto os apararem, clarificarão o açúcar. E, como forem cozidos deitem-nos na panela e deitem-lhe a conserva fervendo; e assim lha deitarão até que sejam feitos, que será aos quinze dias ou antes».
Encontro de D. João I com o duque de Lancaster
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O fabrico de bolos não se encontrava muito desenvolvido. Anteriormente ao século XV, o elevado preço do açúcar obrigava ao uso do mel como único adoçante ao alcance de todas as bolsas. Mas mesmo depois, não se vislumbram traços do frequente consumo de bolos à maneira moderna.
Havia excepções: fabricavam-se biscoitos de flor de laranja, pastéis de leite e pão-de-ló, ao lado dos chamados fartéis, feitos à base de mel, farinha e especiarias. Com ovos também se produziam alguns doces: “canudos e ovos de laços”, por exemplo. Contudo, só a partir do Renascimento e, mais particularmente, dos séculos XVII e XVIII, se desenvolverá a afainada indústria doceira nacional.
Mas a base da alimentação medieval, quanto ao povo miúdo, residia nos cereais e no vinho. Farinha e pão, de trigo, milho ou centeio, e também cevada e aveia, ao lado do vinho, compunham os elementos fundamentais da nutrição medieva. O panorama do campo cultivado ofereceria, ao viajante de hoje, um certo aspecto monótono, tão avassaladoras as searas e as vinhas se mostravam por todo o Portugal.
Por excelência, pão era de trigo. Coziam-se grandes pães, geralmente de forma circular, que cresciam pouco. Serviam, ao mesmo tempo, de alimento e de suporte para a comida.
Perdiz
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Não se usavam pães pequenos, à maneira moderna. Tabelamentos do século XV indicam que os pães normalmente consumidos oscilavam entre 150 e750 gramas de peso. Embora por todo o País abundassem as searas de trigo, a produção era insuficiente para o consumo. Semeava-se «pão» por toda a parte, em solos que não ofereciam um mínimo, sequer, de condições favoráveis, e o resultado era um fraco rendimento por unidade. As crises cerealíferas repetiam-se em anos próximos, especialmente em relação aos centros populacionais. Uma cidade como Lisboa, ou uma província como o Algarve, necessitavam então de importar trigo do estrangeiro. Vinham carregamentos de cereais de França, de Inglaterra, da Alemanha, da Itália, de Castela. O pão subia de preço e muita gente podia morrer de fome.
No campo, a situação era um pouco melhor para o povo miúdo. Havia sucedâneos para o pão: a castanha ou a bolota, por exemplo. Aliás, aqui não era a farinha de trigo a base da panificação. Milho, centeio e até cevada faziam-lhe as vezes. Note-se que o «milho» não equivalia ao que hoje assim denominamos e que só foi introduzido na Europa nos fins do século XV e princípios do XVI, vindo da América (milho maiz). O «milho» da Idade Média era o actual milheto, ou milho miúdo, ou então o milho painço. Ambos se encontravam muito difundidos pelas regiões mais húmidas de Portugal, exactamente as que, mais tarde, os substituíram pelo maiz. Em Trás-os-Montes e nas Beiras Interiores, o centeio fornecia a base do pão para consumo normal. Mas sempre o trigo se achava presente». In A. H. Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa, Aspectos da Vida Quotidiana, A Esfera dos Livros 2010, ISBN 978-989-626-241-9.
Cortesia de Esfera dos Livros/JDACT