terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Camões e a Infanta D. Maria: Parte XIII. Ceuta. «Se nas odes 3ª e 1ª e no soneto 74 se acha reproduzido o estado de espírito do poeta ao começar o novo exílio (primeiramente irritação contra o “peito duro, cruel e empedernido” da infanta; em seguida, revivescência da paixão amorosa, ‘porfia na teima insana’), a elegia 2ª revela-nos a fase intermédia e a epistola 1ª patenteia-nos a última»

Cortesia de wikipedia 

Na ode 1ª ainda o poeta se queixa da infanta, mas já reaparece a sua paixão por ela. Novo Endymion, dirige-se à Lua (Delia, Diana, Lucina), que em seguida identifica com a sua bem-amada.

Detem um pouco, musa, o largo pranto,
Que Amor te abre no peito,
E, vestida de rico e ledo manto,
Demos honra e respeito
Áquella cujo objeito
Todo o mundo allumia,
Trocando a noite escura em claro dia.

Ó Delia, que, apesar da névoa grossa,
Cos teus raios de prata
A noite escura fazes que não possa
Encontrar o que trata,
E o que na alma retrata,
Amor por teu divino
Raio, por que endoudeço e desatino :

Tu, que de formosíssimas estrellas
Coroas e rodeias
Tua cândida fronte e faces bellas,
E os campos formoseias
Co'as rosas que semeias,
Co'as boninas que gera
O teu celeste humor na primavera:

Para ti guarda o sitio fresco d'Ilio
Suas sombras formosas;
Para ti o Erymantho, Olympo e Pilio
As mais purpúreas rosas;
E as drogas mais cheirosas
Desse nosso oriente
Guarda a Felice Arábia, mais contente.

jdact

De qual panthera ou tigre ou leopardo
As ásperas entranhas
Não temeram teu fero e agudo dardo,
Quando por as montanhas
Ligeira atravessavas,
Tão formosa que Amor de amor matavas?

Pois, Delia, do teu ceu vendo estás quantos
Furtos de puridades,
Suspiros, maguas, ais, musicas, prantos,
E as amantes vontades.
Que, umas por saudades,
Outras por crus indicios.
Fazem das próprias vidas sacrifícios:

Já veio Endymião por estes montes,
O ceu, suspenso, olhando,
E teu nome, cos olhos feitos fontes.
Em vão sempre chamando,
Pedindo suspirando
Mercês á tua beldade.
Sem que ache em ti um'hora piedade.

Por ti feito pastor de branco gado.
Nas selvas solitárias
Só de seu pensamento acompanhado,
Conversa as alimárias,
De todo o amor contrarias,
Mas não como a ti duras.
Onde lamenta e chora desventuras.

Das castas virgens sempre os altos gritos.
Clara Lucina, ouviste,
Renovando-lhe as forças e os espritos;
Mas os d'aquelle triste
Já nunca consentiste
Ouvi-los um momento,
Para ser menos grave o seu tormento.

Não fujas, não, de mi! Ah não te escondas
D'um tão fiel amante!
Olha como suspiram estas ondas
E como o velho Atlante
O seu collo arrogante
Move piedosamente,
Ouvindo a minha voz, fraca e doente.

Cortesia de wikipedia

Triste de mi! Que alcanço por queixar-me,
Pois minhas queixas digo
A quem já ergueu a mão para matar-me,
Como a cruel imigo?
Mas eu meu fado sigo,
Que a isto me destina,
E que isto só pretende e só me ensina.

Oh quanto ha já que o ceu me desengana!
Mas eu sempre porfio
Cada vez mais na minha teima insana!
Tendo livre alvedrio,
Não fujo o desvario,
Porque este, em que me vejo,
Engana co'a esperança o meu desejo.

Oh quanto melhor fora que dormissem
Um somno perennal
Estes meus olhos tristes, e não vissem
A causa de seu mal
Fugir a um tempo tal.
Mais que dantes proterva,
Mais cruel que ursa, mais fugaz que cerva!

Ai de mi, que me abraso em fogo vivo.
Com mil mortes ao lado,
E quando morro mais, então mais vivo!
Porque tem ordenado
Meu infelice fado
Que, quando me convida
A morte, para a morte tenha vida?

Secreta noite amiga, a que obedeço,
Estas rosas, porquanto
Meus queixumes me ouviste, te offereço,
E este fresco amaranto,
Húmido já do pranto
E lagrimas da esposa
Do cioso Titão, branca e formosa.

Cortesia de wikipedia

Contemporâneo das duas tão belas, tão sentidas odes, talvez escrito entre uma e outra, é também o soneto 74;

 
Aquella fera humana, que enriquece
A sua presunçosa tyrannia
Destas minhas entranhas, onde cria
Amor um mal, que falta quando crece

Se nella o ceu mostrou, como parece»
Quanto mostrar ao mundo pretendia,
Porque de minha vida se injuría?
Porque de minha morte se ennobrece?

Ora, emfim, sublimai vossa victoria,
Senhora, com vencer-me e captivar-me.
Fazei della no mundo larga historia;

Pois, por mais que vos veja atormentar-me,
Já me fico logrando desta gloria
De ver que tendes tanta de matar-me.

Como se vê pelas três poesias que acabo de transcrever, Camões atribui o seu desterro para Ceuta à interferência directa da infanta. Foi ela que, “inda mais deshttmana que Callirrhoe, ergueu a mão para o matar; é ella a fera humana que se injuria da sua attribulada vida e se ennobrece com a sua morte”.

NOTA: Costuma dizer-se que o exílio do poeta, pelo menos o exílio para o Ribatejo, foi obra pessoal de D. João III e da rainha D. Catarina. E, entre outras razões, aduz-se o “Auto d'el-rei Seleuco”, pois não só o enredo da peça lhes não podia ser agradável, por avivar o que se passara com o último casamento de D. Manuel, mas ainda no ‘argumento’, propositadamente disparatado, se fala na ‘Catharina Real, que havia de entrar em scena com uns poucos de parvos numa joeira e os havia de semear pela casa, de que nasceria muito mantimento ao riso’. Quer-me parecer que o poeta, efectivamente, quis ser desagradável ao rei e à rainha, com o intuito de lisonjear a infanta. Toda a gente sabia, com efeito, as razões de queixa que ela já então tinha do meio-irmão e da tia e cunhada. Mas se el-rei (que, diga-se de passagem, no ano de 1546, em que o auto foi escrito e representado, residiu fora de Lisboa, como já fica dito) teve conhecimento do caso, é provável que se não incomodasse muito, se estava informado das loucas pretensões do poeta. É até natural que gostasse houvesse um leviano que comprometesse a infanta. D. João III por coisa nenhuma queria desembolsar as 400:000 dobras de ouro a que ela se julgava com direito, em virtude do contracto matrimonial celebrado entre D. Manuel e a ex-noiva de seu filho e sucessor.

 
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Qual o motivo da enérgica, da inexorável altitude, assumida pela infanta, quando viu que o renitente poeta, depois de ter voltado do Ribatejo, continuava a mostrar-se apaixonado por ela?
A meu ver, o motivo, pelo menos o principal, se houve mais de um, foi o seguinte:
  • a ilustre senhora, que tinha então em perspectiva o casamento com o herdeiro da coroa de Espanha, viúvo desde 1545, sabia muito bem que o seu régio e tortuoso meio-irmão, para lhe criar obstáculos, era muito capaz de fazer correr que ela dava ouvidos a um doidivanas de um poeta .
NOTA: «Depois de todos estes negócios (projectos de casamento da infanta com o Delfim, filho de Francisco I, e com o arquiduque Maximiliano, herdeiro do trono imperial) serem tratados pelo modo que disse, veio a morrer no ano de 1545 a princesa dona Maria, filha del Rei dom Joam terceiro, que era casada com dom Phelippe Príncipe de Castela, filho herdeiro do Imperador D. Carlos, depois da morte da qual, ele e a Rainha dona Leonor trataram de casar (a infanta D. Maria) com este Príncipe dom Phelippe». Damião de Góis, Chronica do felicissmio rei dom Emanuel (era assim que escreviam esta palavra Erasmo. «Muerla esta Princesa (D. Maria), se tratò luego de buscar otra muger al Príncipe Don Felipe. . . De espacio iba mirando Carlos Quinto, a quien tocaua este cuidado, la mayor conueniencia en este segundo casamiento de su hijo; y assi perseuerò viudo algunos anos, tiempo em que siempre el César se inclinaua a q casasse con la Infanta Maria, porque, fuera de ser el mejor acierto, con la execucion satisfacia a su hermana Leonor, que, viuda ya dei Rey Francisco de Francía, auia passado a Flandes, y instaua por el efecto, por ver a su hija acomodada de estado; y como el negocio se auia platicado entre los dos, apretauase por parte de la Reina sobre el al Rey Don Juan, para que preuíniesse la entrega del dote que tocaua a su hija»

Continua o consciencioso bigrapho da infanta:
  • «Afligian al Rey estas diligencias, que nada deseaua menos que dexar salir esta Princesa de Portugal, asi por escusarse de pagar tan grande suma, como por el poco afecto q algunos dezian que siempre tuuo a esta media hermana; mas hallandose apretado destos Principes, y de otras personas del Reino, que le hablauan en lo mismo en fauor de la senora Infanta, trato de buscar ocultamente medios de estoruarlo». E o ardil a que nesta occasião recorreu o dissimulado monarca, cujo jogo, aliás, sobre o assumpto passou, em breve, a ser bem conhecido por todos os interessados, consta da curiosa carta que elle enviou, em 27 de Junho de 1550, a Lourenço Pires de Távora, seu embaixador junto de Carlos V, carta que Fr. M. Pacheco transcreve e commenta devidamente.

Cortesia de wikipedia

Se nas odes 3ª e 1ª e no soneto 74 se acha reproduzido o estado de espírito do poeta ao começar o novo exílio (primeiramente irritação contra o “peito duro, cruel e empedernido” da infanta; em seguida, revivescência da paixão amorosa, ‘porfia na teima insana’), a elegia 2ª revela-nos a fase intermédia e a epistola 1ª patenteia-nos a última. Vejamos.

Na elegia 2ª, dirigida, segundo creio, a D. Francisco de Noronha, o poeta reconhece que nada o “defende das lembranças amorosas” e declara escrever o “seu derradeiro canto”.
Se o exílio não termina, venha a morte.

Aquella que, d'amor descomedido,
Por o formoso moço se perdeu,
Que só por si d'amores foi perdido,

Despois que a deusa em pedra a converteu,
De seu humano gesto verdadeiro
A ultima voz só lhe concedeu.

Assi meu mal do próprio ser primeiro
Outra cousa nenhuma me consente,
Que este canto, que escrevo derradeiro.

E se uma pouca vida, estando ausente.
Me deixa Amor, é porque o pensamento
Sinta a perda do bem de estar presente.

Senhor, se vos espanta o soffrimento,
Que tenho em tanto mal, para escrevê-lo
Furto este breve espaço a meu tormento.

In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/ JDACT