segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Maria Rosa Colaço. O Mistério da Coisinha Azul. «Tiago pegou numa concha e atirou-a para longe. No momento em que caiu fez - plooock! - e a água abriu-se em círculo. Do meio do último círculo surgiu um homem pequenino. Caminhou sobre as ondas como numa estrada de terra firme»

Ilustração de Ana D. de Almeida
Cortesia de platanoeditora

Com imensa saudade, falo de si Maria Rosa. Descanse...  neste Natal!
Aqui na Terra continuo a contar as suas estórias de encantar!

«Tiago estava sentado na praia. Era o entardecer de um fim de Setembro. As pessoas, carregadas de cestos, toalhas às cores, garrafões, chapéus-de-sol, sacos de plástico, tinham partido no último barco.
Sentindo a praia livre e finalmente sua, chegaram então as gaivotas.
Vinham em grandes bandos, planavam, e depois mergulhavam de repente sobre qualquer coisa que só elas viam. Deixando rastos de espuma, mal pousando as patas no chão com seu ar sempre atarefado, os caranguejos invadiam aquela hora dourada, quase noite, quase dia.
Uma brisa suave que trazia o perfume das camarinhas e da urze do outro lado da serra soprava nos cabelos do Tiago, ali, sentado junto à água.
Pelos ombros descia-lhe uma toalha vermelha e, de longe, era como uma chama ou o último reflexo do Sol. Tiago pegou numa concha e atirou-a para longe. No momento em que caiu fez - plooock! - e a água abriu-se em círculo. Do meio do último círculo surgiu um homem pequenino. Caminhou sobre as ondas como numa estrada de terra firme.

Ilustração de Ana D. de Almeida
Cortesia de platanoeditora

Usava um fato azul-marinho. Depois de se olhar com atenção, todavia, reparávamos que não era bem um fato: parecia feito de escamas porque brilhava, e o mais natural era que fosse de escamas já que vinha da terra dos peixes que é o mar.
Trazia na mão direita uma estrela-do-mar, que usava como uma bússola; a mão esquerda segurava um saco transparente que depois se viu ser uma alforreca. Em vez de cabelos usava um gorro de algas castanhas a que ainda se agarravam pequeníssimos búzios. Tiago estava imóvel. Quase não respirava.
"Aquilo" era tão pequenino que o mínimo movimento o faria desaparecer, de certeza. Sempre a olhar para a estrela-do-mar à procura do caminho certo, naquele deserto enorme de areia que se estendia à sua frente, o pequenino homem passou perto de Tiago, que, nessa altura, por causa do cheiro das algas, deu um grande espirro.
Então, aconteceu uma coisa esquisita:
  • com a força do espirro o homenzinho voou, voou e caiu de repente mesmo no meio da mão de Tiago.

Ilustração de Ana D. de Almeida
Cortesia de platanoeditora

Primeiro, sacudiu-se, atirando gotinhas de água para todos os lados. Com um gesto rápido desviou a cabeleira de algas e mexilhões que lhe tapavam os olhos, de nácar brilhante. Depois, fixou Tiago muito tempo, sem pestanejar, com o seu olhar de concha polida. Mas, o mais espantoso havia de acontecer a seguir, quando a "coisinha" começou a conversa com ele. A conversar e a rir mas sem mexer sequer os lábios, que lembravam uma amêijoa.
Tiago ouvia tudo e respondia-lhe da mesma maneira, como se dentro da sua cabeça houvesse uma boca invisível que falava com a boca invisível da cabeça do outro.
Nessa conversa sem palavras ditas, sem sons, falaram de várias coisas, claro, e o que se ouvia na praia eram gargalhadas pequeninas, secas. Parecia o vento a soprar numa campainha de vidro.
Ilustração de Ana D. de Almeida
Cortesia de platanoeditora

A certa altura, a boca invisível que tinha aparecido na cabeça de Tiago perguntou à boca invisível do outro quem era ele e donde vinha. O homenzinho achou aquela pergunta muito pateta pois Tiago vira muito bem que ele saíra do mar.
E quanto ao nome chamava-se Pfdrrkmliffz.
- O quê?
- Pfdnkmliffz.
- Mas eu não sei pronunciar isso.
- É muito fácil.
- Facílimo! Mas posso antes chamar-te "coisinha azul"?
- "Coisinha azul"!? Porquê? O meu nome é muito mais bonito e diz-se muito mais depressa: Pfdnkmliffz.
- Dizia-se, se eu fosse capaz. Mas isso não é língua de gente fora do mar. E chamo-te coisinha porque és pequenino e muito querido. Azul, porque estás todo vestido de azul. Tal e qual um bocadinho de céu.
- Ah! E tu?
- Eu, o quê?
- Como te chamas?
- Tiago.
- Es muito grande.
- Ainda vou crescer muito mais. Só tenho oito anos.
- Depois cabes na tua gruta?
- Eu vivo numa casa.
- E eu numa gruta com paredes de coral rosado. É bonito, lá.
- E que vieste fazer a esta praia?
- Ah! Isso é um grande segredo que eu não posso contar a ninguém fora da água. Queres ir comigo à minha gruta?
- Só sei nadar poucochinho.
- Não precisas de saber nadar. Se vieres comigo, mal entras na água ela afasta-se e tu caminhas como aqui na areia. E vou dizer-te mais uma coisa...

Ilustração de Ana D. de Almeida
Cortesia de platanoeditora

Nessa altura da conversa, "Coisinha Azul" deu um salto como se fosse um gafanhoto de duas pernas e disse um segredo na orelha de Tiago, que riu à gargalhada.
E não sei explicar mais nada do que aconteceu.
Um zumbido como de cem enxames de abelhas ou de um motor de avião, ao longe, entrou-me na cabeça, que já estava tonta daquela conversa sem bocas de falar e que se ouvia cá dentro tal qual um telefone.
Desviei o olhar para longe, lá para longe onde a noite já vinha cheia de pressa.

Foi neste pequeníssimo instante que eles desapareceram os dois.

Aflito e curioso, percorri toda a praia até o Sol mergulhar completamente no horizonte. Olhei as águas, onda a onda, reflexo a reflexo.
Tinham mesmo desaparecido.

Ilustração de Ana D. de Almeida
Cortesia de platanoeditora

Intervalo breve em que as gaivotas regressaram aos seus ninhos, que ninguém sabe onde fica, e dos caranguejos só restava a espuma da sua respiração.
A praia tinha pousado ali vinda de outro tempo e lugares.
A serra, ao longe, era uma sombra escura. Senti um arrepio. Apeteceu-me gritar para saber que estava acordado.
Pus as mãos em concha: "Estou aqui!"
Os ecos responderam-me: "Estou aqui! Estou aqui! Estou aqui!"

E não posso contar mais nada, absolutamente mais nada porque tudo isto foi também para mim um grande mistério. Maior que o da "Coisinha Azul".
Esquecia-me de dizer que eu estava sentada na ponte velha do cais antigo e foi dali que assisti a tudo, como num filme. Mas não pensem que foi sonho: a toalha vermelha de Tiago ainda está nas minhas costas, como uma chama, pois a noite desceu. E está frio.
Subitamente».
In Maria Rosa Colaço, O Mistério da Coisinha Azul, ilustrações de Ana Duarte de Almeida, Plátano Editora, 1989, ISBN 972-621-494-7.

Cortesia de Plátano Editora/JDACT