sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Painel de São Vicente de Fora. Nuno Gonçalves: Parte VII. Painel da Relíquia (1). Uma obra-prima da pintura portuguesa do século XV, pintada a óleo entre 1470 e 1480. «Um livro com caracteres uniformes mas desconhecidos é, com efeito, impossível de ignorar. Se não é latim, nem português, nem hebraico, […] a hipótese da pequena adivinha local ser um sintoma visível da grande adivinha global, muito mais facilmente resolúvel quando integrada no contexto que a rodeia»

Cortesia de paineis

Painel da Relíquia
Parte 1.

Um Painel de Aparências
A mais curiosa característica deste painel é a forma como obriga até os mais entusiásticos literalistas a fazer preceder as suas descrições pela palavra «parece». Uma descrição típica poderia ser a seguinte:
  • um objecto que parece uma relíquia,
  • um homem que parece um judeu,
  • com um sinal de seis pontas que parece judaico,
  • um livro anotado que parece talmúdico,
  • escrito em caracteres que parecem hebreus,
  • uma caixa vazia que parece um caixão,
  • duas varas que parecem uma só,
  • e até dois figurantes que parecem gémeos...
A principal razão por que tantas coisas «parecem» sem ser exactamente aquilo que parecem, é a seguinte:
  • são representações alegóricas, impossíveis de localizar literalmente por isso mesmo, e necessitando de uma interpretação elaborada por fazerem parte de uma charada que, apesar do «parece» sistemático, continuará a passar despercebida até que a sua verdadeira natureza seja absorvida.

Um painel de aparências
Cortesia de paineis

Da verosimilhança da solução que para a mesma charada encontrarmos e do seu poder explicativo decorrerá, naturalmente, a prova, impossível doutra forma.

Uma escrita e um sinal desconhecidos
Um livro em caracteres fantasistas que podem ou não constituir uma mensagem codificada, mas não pertencem a nenhum alfabeto conhecido, deveria ser uma excelente pista para a compreensão da natureza do políptico. Porém, e por extraordinário que pareça, as tentativas de decifração do hipotético texto são desacompanhadas de qualquer questionamento das simples e tranquilas interpretações literais de tudo o resto, como se o pintor tivesse resolvido fazer uma pequena charada local, mas todas as restantes indicações e problemas devessem ser esquecidos por não serem suficientemente denunciados.

Um livro com caracteres uniformes mas desconhecidos é, com efeito, impossível de ignorar. Se não é latim, nem português, nem hebraico, procuram-se chaves abstractas de descodificação ou estudam-se ignotas escritas arábicas, mas jamais se reconhece a hipótese da pequena adivinha local ser um sintoma visível da grande adivinha global, muito mais facilmente resolúvel quando integrada no contexto que a rodeia.

Livro ilegível
Cortesia paineis

E o contexto que a rodeia de forma mais próxima parece transparente: o livro encontra-se nas mãos de uma figura com aspecto severo, marcada por um sinal vermelho de seis pontas na indumentária, cujo gesto denuncia a intenção de mostrar que as páginas se voltam da esquerda para a direita, isto é, no sentido contrário ao habitual. Se o leitor reproduzir o gesto defronte de um espelho, aperceber-se-á da forma como o posicionamento dos dedos no acto de passagem da página é significativo de uma tal intenção, muito mais que da exibição de algum trecho específico de livro conhecido.

O sinal vermelho é uma espécie de asterisco de seis pontas que, não se tratando exactamente de uma estrela de David, tem sido, por vezes, desculpado como uma possível adição. No entanto, o uso do emblema com o seu formato actual como símbolo quase exclusivo do Judaísmo é relativamente recente, sendo perfeitamente admissível que formas e variações diferentes baseadas no número seis tenham existido. Quando os painéis foram encontrados, o sinal tinha dez pontas em vez de seis, e a conclusão que emergiu durante o restauro de Luciano Freire – que tudo indica ter sido prudente e consciencioso, distinguindo com sucesso as alterações grosseiras que se situavam por cima do verniz original, já que inúmeros pormenores aparentemente absurdos e só entendíveis à luz da charada original foram mantidos – foi a de que quatro pontas tinham sido acrescentadas a um conjunto de seis anteriores. Essa conclusão enquadra-se bem com o anti-judaísmo mais organizado de épocas posteriores à da concepção dos painéis, que pode ter conduzido à ocultação de um elemento fortemente sugestivo de uma presença judaica.

Sinal vermelho de seis pernas
Cortesia de paineis

Note-se que as hipóteses de uma cruz inicial de Santo André (em forma de X) ou da simples ausência completa do sinal, são fragilizadas pelas dez pontas que pressupõem haver algum motivo para um acrescentamento. Por que razão se procuraria disfarçar uma cruz perfeitamente admissível ou, pior ainda, criar um disparate sem sentido a partir do nada que não requer correcção alguma?
Uma indicação de que o sinal de seis pontas é genuíno encontra-se, para mais, no texto das Ordenações Afonsinas (livro II, título 86) onde a lei joanina de 1429 regulariza o uso de «sinais vermelhos de seis pernas cada um, no peito, acima da boca do estômago» já que os judeus «não traziam sinais quais deviam trazer, e esses que traziam eram tão pequenos que se não pareciam, e outros os traziam de duas e três pernas e mais não». Saber se os sinais de seis pernas prescritos eram idênticos ao da figura dos painéis, ou seriam antes estrelas de David com um formato mais próximo do emblema actual, é uma questão secundária, já que o acerto da cor e do local onde o sinal está colocado – nem demasiado ao meio, nem demasiado ao lado, mas exactamente acima da boca do estômago – aponta a sua genuína antiguidade nos painéis.

O elemento chave para entender a figura de negro é, no entanto, o livro ilegível. A conotação judaica não é dada só pela forma como as páginas são voltadas, mas também pelo aparecimento de caracteres ilegíveis que poderiam sugerir a escrita hebraica aos olhos dos não conhecedores, como se interessasse apenas a compreensão de que se trata de um livro hebraico, e não a leitura de um qualquer trecho bem determinado mas irrelevante para os fins em vista. A figuração de comentários ao longo das margens parece sugerir a prática talmúdica de interpretação e comentário da escritura, e reforça ainda mais a conotação judaica. A presença expressa de numerosas anotações marginais num livro ilegível não parece fazer sentido em qualquer outro contexto.
A ilegibilidade do livro não é certamente devida a retoques ou alterações, visto que a escrita é ilegível mas uniforme. De qualquer modo, dada a transparência da figura, o problema reside na integração do elemento judeu na charada, já que é suficientemente óbvio mesmo sem a compreensão de tudo o resto». In Painéis de São Vicente de Fora.


Cortesia de Painéis/JDACT