Histoire de L’Inquisition de Goa
Charles Dellon
Cortesia de BNP
Leitura e prefácio de Raul Rego
«A fundação, actividade, extinção, restabelecimento e definitiva supressão do Tribunal do Santo Ofício (maldito) em Goa correspondem a dois séculos e meio de torpezas sem par até nas restantes Inquisições do Reino (malditas). Não é apenas a intolerância e a crueldade católicas em meio onde outras crenças tinham botado raízes e tradições e onde o mínimo senso político mandaria ser compreensivo para os usos e costumes da terra. Mais que isso, num ambiente que lhe é estranho, a Inquisição (maldita) de Goa encheu as prisões e alimentou as fogueiras como nenhuma outra.
Ao estabelecer-te em Portugal, em 1536, a Inquisição (maldita) firmava-se numa terra com séculos e séculos de catolicismo, onde a heresia e outros crimes da alçada do Santo Ofício já antes caíam sob o rigor das leis e ordenações seculares. Ao firmar-se em Goa, a Inquisição começa a semear o terror num país de missão, em que os apóstolos buscam trazer para a fé cristã gentes que secularmente professam outras religiões. Nem se trata de povos selvagens, mas de populações de antigas crenças e civilização, nesse ponto podendo emparceirar com os homens vindos da Europa, nas armadas, e que, por força das armas e em tratos sucessivos, se fixavam na costa do Malabar, noutras terras do Oriente e na costa oriental de África. Tudo isso passava para a jurisdição dos inquisidores (malditos) de Goa.
A lei do crê como eu ou morres, aplicada aos judeus em Portugal e Espanha, ia ser levada aos povos orientais com quem nos relacionamos, como a Espanha a levaria aos povos da América; enquanto nós, no respeitante ao Brasil, fomos menos intolerantes.
D. João III hesitou muito em estabelecer a Inquisição em Goa, embora para tal instado pelos Jesuítas, que se tinham apoderado do seu ânimo, e, mais ainda, do de seu irmão o cardeal Henrique, inquisidor-geral. Note-se que as relações da Companhia de Jesus com a Inquisição foram as melhores até meados do século XVII, tanto que um dos grandes influentes, em Roma, para serem satisfeitos os desejos do monarca português para a erecção daquele tribunal no nosso país, foi Inácio de Loiola. E, já depois de conseguido o seu desígnio, quis o rei entregar à Companhia de Jesus o Santo Ofício, nomeando até para inquisidor-geral um padre daquela sociedade, ao que o fundador da Companhis opôs muitas dificuldades, embora disposto a «que se fizesse em tudo o que mais fosse do agrado de sua Alteza».
Cortesia de bnp
S. Francisco Xavier escrevia, em Maio de 1546, a João III, salientando a necessidade que a Índia «tem de pregadores, porque, à míngua deles, a nossa santa fé, entre nós, os portugueses, vai muito perdendo-se a fé». E depois:
- «A segunda necessidade que a Índia tem para serem bons cristãos os que nela vivem é que mande V. A. a santa Inquisição, porque há muitos que vivem a lei mosaica e a seita mourisca, sem nenhum temor de Deus, nem vergonha do mundo. E porque isto são muitos e espalhados por todas as fortalezas, é necessária a santa Inquisição e muitos pregadores».
Antes de partir para a Índia, S. Francisco Xavier ocupara-se com Simão Rodrigues das coisas da Inquisição (maldita), a pedido do inquiridor-geral, D. Henrique:
- «Um dia destes vesti uma dezena deles (dos presos) com sambenitos, e a dois deles queimaram, com os quais nos mandou o infante inquisidor-geral que estivéssemos, e estivemos, até à morte».
Instado, João III resiste, e morre, em 1557, sem ter estabelecido o Santo Ofício em Goa. É no tempo da rainha Catarina, regente na menoridade de seu neto D. Setastião, que, em 2 de Março de 1560, o cardeal Henrique, determina o estabelecimento do Tribunal em Goa. Terá dois inquisidores, para lá tendo seguido logo na armada de Abril de 1560 Aleixo Falcão e Francisco Botelho, a mesma em que seguia também Gaspar Pimentel, que será primeiro arcebispo de Goa.
Instalaram-se os inquisidores no palácio do Sabaio, que fora antes residência dos vice-reis, onde abriram vinte cárceres pequenos e dois maiores e instalaram salas de audiência e despacho e residência do primeiro inquiridor; e logo no relatório do ano seguinte dão conta de ter prendido «alguns franceses estrangeiros por culpas da seita luterana» e também dizem mandar para o reino «alguns presos que nesta Mesa do Santo Ofício foram despachados pelas causas conteúdas em suas sentenças, que com elas hão-de ser entregues na casa do Santo Ofício dessa cidade»
Cortesia de colonialvoyage
O tribunal organiza-se e começa a sua triste faina. Note-se, todavia, que já antes do estabelecimento da Inquisição em Goa ali se efectuara um auto-de-fé, em 1543, para queimar um médico cristão-novo, Jerónimo Dias. A iniciativa foi do bispo, que foi ter com o governador, depois de ter armado uma cilada à vítima, mandando-lhe quem lhe puxasse pela língua e o fizesse falar. O prelado armou-se em presidente de tribunal, «com mestre Diogo e frei António, comissário de S. Francisco e pregador, e outro pregador domínico e o vigário-geral, com outros padres religiosos, todos assentados à mesa». Lavraram a sentença, comunicaram-na ao réu, que se confessou, antes de ser «afogado» e queimado.
Também ainda antes de 1560 e ainda com João III vivo, se conhece a tentativa de fixar o Tribunal do Santo Ofício (maldito) em Goa, no ano de 1554.
Baião cita a comissão passada pelo cardeal Henrique a Sebastião Pinheiro, em 2 de Março de 1554, que «ora vai por vigário-geral da Índia» para poder agir contra todos «que se acharem culpados, suspeitos do dito delito e crime de heresia e apostasia e contra todos os fautores, defensores e receptados deles e para que possa fazer e faça contra todos e cada um deles processos em forma devida de direito, segundo os sacros cânones dispõem e a forma da bula da Inquisição (maldita) e o Regimento do Santo Ofício…». In O Último Regimento e o Regimento da Economia da Inquisição de Goa, Leitura e Prefácio de Raul Rego, Série Documental, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1983.
Cortesia da BN de Portugal/JDACT