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Estas hipóteses, que sucessivamente se esboroam e se desfazem umas de encontro às outras, e algumas ficaram em silêncio, insisti em apresenta-las ao leitor para despertar a sua desconfiança e para o levar à conclusão de que é prudente não nos aventurarmos além das três ou quatro certezas autenticadas que ficaram a respeito do nosso poeta. Ei-las:
- era alentejano, natural da vila do Torrão como ele próprio o afirma explicitamente;
- colaborou no “Cancioneiro Geral”, de Garcia de Resende, publicado em 1516, de onde podemos deduzir que nascera no último quartel do século XV;
- foi companheiro de Sá de Miranda, como no-lo atestam as sextinas que, em comum, eles dirigiram às damas do Paço;
- faleceu antes de 1554, porque nesse ano são publicadas as suas obras, incompletas e sem intervenção do Autor.
A estes factos autenticados convém acrescentar outra espécie de documentação que servirá para esboçar o retrato moral da personagem e que vêm a ser as lendas que nos fins do século XVI e princípios do século XVII corriam a respeito do nosso poeta. Uma delas é o lindo conto de amor conservado por Faria e Sousa, que completou o retrato por estas palavras:
- Diose tãto a las amorosas passiones, i tristezas, i soledades, q de noche se quedava algunas vezes por los bosques, i a las margenes de los rios, gemiêdo e llorãdo.
A outra lenda perpetuou-a um romance espanhol do século XVI, onde se conta a história de certo fidalgo chamado Don Bernaldino que se matou ao fio da espada, de desespero, porque a sua amada se partira para ‘longes terras’; no rico monumento de cristal onde ele ficou sepultado gravaram-se estas palavras:
- Aqui está Don Bernaldino, que murió por bien amar.
E eis os elementos com que podemos responder à pergunta de há pouco: quem era Bernardim Ribeiro? Um poeta alentejano da corte de Manuel I e João III, que conviveu com os poetas do “Cancioneiro Geral”, e nomeadamente com o Francisco Sá de Miranda, e que deixou à sua roda uma lenda amorosa que o emparceira com o célebre Macias, o enamorado, e o impôs fora de fronteiras como um exemplo do português que sabe morrer de amor.
Tudo quanto vá além disto é hipótese; mas nisto, pelo menos, pode o leitor acreditar confiadamente.
Não menos enredado é o outro problema: que escreveu Bernardim Ribeiro?
Ele é o autor incontestado de, pelo menos, uma novela, cinco éclogas, um romance e várias poesias menores, cujas credenciais pode o leitor verificar na «Introdução» de D. Carolina às “Obras de Bernardim Ribeiro e Cristóvam Falcão”. Discute-se, porém, se ele é ou não é o autor da écloga chamada “Crisfal”, uma das obras-primas da bucólica românica, e se lhe pertence uma segunda parte ou continuação da novela cuja parte primeira sabemos ser de sua mão. Mas aqui a nossa situação não é a mesma que no problema biográfico, porque estamos em presença de dados mais objectivos, como sejam os próprios textos em discussão; e ver-se-á, nas páginas que se seguem, como da sua análise podem resultar novas luzes. Começaremos pelo “Crisfal”.
Quando, em 1908, Delfim Guimarães publicava o seu livro onde reivindicava para Bernardim Ribeiro as obras atribui das a Cristóvão Falcão, a nova tese pareceu audaciosa porque vinha destruir uma tradição de cinco séculos. Como, porém, essa tradição se baseava num único texto, os dizeres do primeiro editor das obras, bastava que se provasse que o autor desse texto estava em erro, ou que as suas palavras não tinham o sentido que hoje lhes damos, para a tradição perder completamente o pé. Delfim Guimarães procurava demonstrar:
- que Cristóvão Falcão não podia ter escrito as obras poéticas que lhe são atribuídas (a écloga e uma carta em verso escrita da prisão a sua senhora), porque era também o autor de uma carta dirigida ao Rei e inçada de erros de ortografia e de sintaxe e porque a lenda dos seus amores com Maria Brandão, que teriam dado origem a estas obras poéticas, era destruída pela impossibilidade cronológica, segundo as hipóteses estabelecidas por Teófilo Braga;
- que o autor das obras em questão era Bernardim Ribeiro, não só por causa da semelhança de estilo daquelas com as éclogas de indiscutida autoria bernardiniana, mas também porque o esquema da história narrada numas e noutras e ainda na “Menina e Moça” era idêntico: a história de Bernardim, afinal.
Portanto, os primeiros editores das obras de Bernardim Ribeiro ou se tinham enganado ou tinham mentido, porque o autor da famosa écloga não era Cristóvão Falcão; e o criptónimo Crisfal formava-se não das sílabas iniciais daquele nome, mas da expressão “Crisma Falso”, atrás da qual Bernardim se quis encobrir». In António José Saraiva, Poesia e Drama, Estudos sobre Bernardim Ribeiro, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-477-0.
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